A força do ser humano é algo inatingível, inigualável, incalculável e, acima de tudo, surpreendente. Quando nos defrontamos com pessoas dotadas de uma capacidade sobrenatural de usar a força, paramos, sorrimos e apreciamos a companhia. Se juntarmos a essa força um talento mágico com a capacidade de nos embrenhar e enrolar em ondas sonoras onde, quanto mais é a profundidade maior é o prazer, aí tudo se torna imaculado.
Há noites imaculadas com pessoas que vão ficar para sempre na história não só da música, como na nossa. Falo da noite da passada quinta-feira dia 03 de Outubro no Grande Auditório do CCB.
Uma sala cheia esperava ansiosa por um dos grandes mentores do Blues, o Mestre John Mayall. Entre artistas, pessoas de outros países, músicos, fãs e curiosos, poucos eram os que tinham menos de meia idade, mas todos estavam ali para ver brilhar uma estrela.
Depois de montar a sua mesa de merchandising e de estar a receber as pessoas com um grande sorriso, John Mayall entra em palco com uma energia e boa disposição de fazer inveja a muito jovem. Ao seu redor, um trio de talento e de luxo que o acompanha na estrada e no palco. Na sua companhia estavam também um Roland e um Hammond, indispensáveis para quem tem gosto apurado no blues e dedos que fazem malabarismos. “Streamline”, faixa comprida e carregadinha de uma energia capaz de parar o momento dava início à viagem. O blues, quando bem tocado, quase não precisa de voz e esta primeira música deixou logo bem claro esse ponto. A voz que ia aparecendo era pouca e era como um instrumento. Tudo o que era necessário era feito pela mestria instrumental de todos que, no verdadeiro blues, é o essencial. Quando John cantava não mostrava o peso da idade mas sim uma garra e vitalidade únicas com uma voz cheia de energia e timbre adequados. Havia danças entre os instrumentos que se conjugavam de tal maneira que atingiam o transcendente. Na quarta música, após já nos deixar deixado rendidos com o seu super talento na guitarra, Carolyn Wonderland, canta uma canção. A voz faz estremecer tal como os seus solos de guitarra e há todo um conjunto de coisas boas a acontecer ao mesmo tempo que nos deixam sem ar. Não seria uma noite de blues se não tivéssemos o encanto da harmónica e foi a acompanhar Carolyn que John a usou a primeira vez. Em “Another Kinda Love”, o solo foi de baixo e revelou não ficar atrás de qualquer um dos outros companheiros. Faixa longa, intensa e densa que antecedeu a versão de “Mama Talk To Your Daughter” de uma das suas pessoas de eleição, J. B. Lenoir. Carolyn volta a cantar depois de “Goin’ Away Baby” e, não poderia ter um apelido mais apropriado. Com aqueles dedos, garra e voz, o sentimento era de que a sorte caminhava entre nós pois estávamos mesmo no mais profundo deleite de uma maravilha. “Nature’s disappearing” revela John que fora feita no ano de 1977 e que se mantém actual, embrenhando-se ainda com mais intensidade nas suas teclas e artes deslumbrantes que lhe são inatas de encantar almas com a música. Depois de mais umas longas danças entre instrumentos, ritmo e vastas paisagens de blues intenso, ainda houve tempo para um encore com “What Have I Done Wrong” e, quase 2 horas depois, termina este grandioso espetáculo.
Nesta noite percorremos trilhos americanos onde o deserto se cruza com o campo e com costumes alegres onde se juntam pessoas para celebrar a vida. O blues vinha de Inglaterra, mas fomos empurrados para o espaço americano num abrir e fechar de olhos como se víssemos este senhor em palcos circulares em qualquer noite quente do interior americano e fosse lá sempre a sua casa. Resta agradecer pela oferta da enormidade de talento, humildade, poder e, principalmente, lição de vida que este Senhor nos deu. “Keep listen to the blues” disse John Mayall em jeito de despedida. Yes we will, my big Sir, yes we will!