No final de Setembro “No Fim Era o Frio”, o último álbum de estúdio dos Mão Morta, fora apresentado pela primeira vez na sala do Hard Club no Porto. Na sexta-feira passada dia 11 de Outubro foi a vez de Lisboa receber, literalmente em braços, a majestosa banda de Adolfo Luxúria Canibal. O concerto fora dividido em duas partes, às quais a banda designou por Acto I e Acto II. As expectativas eram de facto muito elevadas, não sabíamos muito bem o que iríamos experienciar no Acto I mas seria certamente perturbador, à boa maneira de Mão Morta.
Acto I – “No Fim Era o Frio”, apresentação integral do álbum
O concerto começou à hora prevista, sem grande artefacto em palco e sem elaborados jogos de luzes, apenas um pano branco por detrás dos seis músicos que recebia focos vermelhos e azuis. Mesmo ouvindo várias vezes, “No Fim Era o Frio” é definitivamente um álbum “ao vivo”, pois é de uma riqueza sublime. Uma ópera rock, onde o público esteve expectante e manifestou algumas expressões faciais de quem ainda necessitava de digerir o que ali presenciava. É uma viagem que percorre uma realidade ficcionada de um futuro apocalíptico, se nada fizermos por nós e se nada fizermos pelo clima. “O mundo não é mais um lugar seguro“, e é por isso que está tanto frio aqui e os fatos herméticos que vestimos nos tiram o que de melhor há em nós – o sentir e o amar.
“A minha amada”, teve uma interpretação digna de atribuição do mais elevado prémio, no melhor conceituado festival performativo. Uma história de amor dividida em três partes, em que numa primeira somos projectados para um romance queirosiano na intensidade do reencontro dos amantes. O erotismo de Henry Miller consubstancia a segunda parte, numa descrição perfeita do culminar do desejo carnal e que se exprimia nos acordes repetidos e crescentes das guitarras. Por fim a apoteose kafkiana, demonstrada numa metamorfose perfeita: a amada transformada num insecto gigante e nojento. Enquanto este sere extraterrestre devorava sofregamente o amante, as batidas melódicas da bateria e do baixo subiam e desciam acompanhando a intensidade do texto. A cabeça desmembrada, que rebolava na incerteza da morte e de um amo-te, expresso no último suspiro… Bravo Adolfo, bravo!
E já na recta final, “Isto é Real?”, música que nos deixa uma réstia de esperança de que ainda podemos mudar o rumo do mundo, e inverter o bafejar das correntes gélidas “Sinto tanto Frio”. Fim do Acto I e quinze minutos de intervalo.
O Lisboa ao Vivo estava à pinha! Antes das portas abrirem já se avistava um vulto negro ordeiramente em fila posicionado paralelamente ao Tejo. Duas gerações. Pais e mães que levaram as filhas e os filhos mais ou menos pela mão, num gesto de pedagogia cultural. Afinal os Mão Morta são um ícone que atravessa gerações e referencia uma singularidade de estado d’alma. Um merchandising bastante atractivo, onde as figuras minimalistas dos caretos se destacavam nas paredes e no balcão.
Acto II – Rajadas de rock and roll
No segundo acto tivemos uma retrospectiva dos mais de 30 anos do excelente trabalho da banda bracarense. Foram mais de sessenta minutos de puro rock and roll efusivo, disruptivo, hipnótico, apoteótico! Escolha diversificada nos hits, sem caírem naquilo que eventualmente poderia ter soado ao “óbvio” (se assim fosse, teriam incluindo “Oub’Lá” e “Budapeste“). O mesmo público que estivera circunspecto e expectante um quarto de hora antes, foi o mesmo que não parou um único momento esta segunda hora de concerto. Um público com o peso da geração dos “entas” que cresceu a ouvir o “Oub’Lá” e o “E se Depois“. A mesma geração que sempre se exteriorizou efusivamente nos seus concertos, expandindo a raiva e as frustrações que latejavam no interior do peito, “Hipótese do Suicídio” (Pelo meu relógio são horas de matar, 2014). Os rostos circunspectos do Acto I, abriam agora o sorriso e gritavam o refrão como palavras de ordem enraivecidas, ” Tráfego!” ( tema “Sitiados“, álbum Mão Morta, 1988).
Mosh com fartura e ternura, crowdsurfing inclusive do próprio Adolfo Luxúria Canibal (“1º Novembro“, O.D. Rainha do Rock & Crawl, 1991) que passados mais de 30 anos movimentava os músculos em espasmos, com a mesma disruptura com que se auto-mutilou e enlameou o rosto com o seu próprio sangue, ficando o público na dúvida se era uma performance levada ao extremo ou um acidente premeditado (1988, Rock Rendez Vous). O mesmo Adolfo teatral encarnado num demônio charmoso ou num louco elegante em Muller no Hotel Hessiscten Hof (1997, CCB).
Os cinco músicos estavam geometricamente colocados e o suficientemente distantes para exorcizarem em silêncio, ou em comunhão quando subiam o rosto e cruzavam o olhar uns pelos outros, com uma segurança de quem não falha e de quem melhora a cada actuação. Trinta anos num apurar de registos que se sobrepõem como camadas sonoras e rompem em acordes fabulosos, dignos de uma genialidade musical invulgar – Miguel Pedro (baterista) António Rafael (teclista e guitarrista), Ruca Lacerda (guitarrista), Vasco Vaz (guitarrista) e Joana Longobardi (baixista).
O tecto já há muito que pingava gotas de humidade, tal era a energia que os corpos emanavam há quase duas horas mas, mesmo assim, recebemos um encore com dois temas épicos (o primeiro a pedido do público). E como não poderia deixar de ser, “Lisboa” (Mutantes S.21, 1992), que levou ao rubro aquela massa de gente que já estava em levitação há uma hora. E o “Anarquista Duval” fechou aquele que foi, muito provavelmente, o melhor concerto de Rock português dos últimos tempos!
Esta reportagem é dedicada à minha colega e amiga Eliana Berto.