O músico, compositor e produtor colossal Mick Harvey, passou pelo nosso país para duas actuações em Lisboa e no Porto. A pequena orquestra do músico australiano está em digressão pela Europa desde o mês passado, com entradas e saídas de músicos e algumas alterações ao alinhamento. São nove os músicos que se mantêm em palco para interpretarem parte do repertório do cantor francês Serge Gainsbourg (verdadeiro nome Lucien Gizburg e pai da actriz e cantora Charlotte Gaisnbourg), que segundo o próprio, fora dos maiores desafios da sua carreira. A tradução para inglês deste imenso repertório está editado em quatro álbuns que Mick Harvey trabalhou ao longo de mais de vinte anos. Em 1995 editou o primeiro álbum, “Intoxicated Man” onde estão alguns dos clássicos do irreverente artista francês como Harley Davidson, Sex Shop ou Bonnie and Clyde. Dois anos depois surgiu “Pink Elephants”, que integrou o tema arrebatador Je t’aime… moins non plus (em inglês traduzido para I love you… Nor Do I) escrito por Serge Gainsbourg em 1967 e dedicado a Brigitte Bardot.
Quase vinte anos depois, Mick Harvey terminou a composição de mais duas magníficas obras discográficas e editou “Delirium Tremens” em 2016 e “Intoxicated Women” no ano seguinte. E foram basicamente estes dois últimos álbuns que fizeram parte do alinhamento do espectáculo ” Songs of Serge Gainsbourg” na sala da capital Lisboa ao Vivo. Mais de duas dezenas de canções interpretadas com uma composição musical riquíssima, onde a escolha instrumental dignificou merecidamente o trabalho discográfico do artista francês. Quatro violinos, bateria, guitarras (eléctrica, baixo e clássica tocada por Mick Harvey), percussão, teclas (piano) e duas vozes femininas (Xanthe Waite) quase em permanência substituindo assim Jane Birkini (mulher de Serge Gainsbourg) numa boa parte dos duetos.
O palco do Lisboa ao Vivo foi pequeno para tantos músicos, principalmente para os 4 violinistas que se encontravam sentados na lateral esquerda, muito próximos uns dos outros. Mick Harvey e James Johnston estavam ao lado um do outro na frente de palco, juntamente com a panóplia de instrumentos que iam revezando. Harvey, o mestre das cordas e das percussões, tinha à sua frente com um bongô que intercalava com as guitarras, Johnston (Nick Cave and The Bad Seeds 2003-2008 e PJ Harvey) no piano que de vez em quando o deixava atarefado com as ligações. Toby Dammit, outro apóstulo dos The Bad Seeds, encontrava-se numa posição mais elevada na bateria sobressaindo assim numa camisa branca aproada destoando do negro que dominava os restantes músicos. Yoyo Rohm (mais um) discretamente no baixo, posicionado ligeiramente atrás de Mick Harvey. Uma boa disposição e cumplicidade incrível durante toda a actuação em que Harvey fizera questão, desde o primeiro minuto, envolver-nos a todos (o público e a banda) num momento intímista e de partilha. Sentimos que entre o palco e a sala não houve divisões, e que todos estávamos entre amigos de longa data e até os pequenos deslizes ou falhas foram motivo de riso e de piadas.
Tal como Mick Harvey dissera em algumas entrevistas, entrar na obra de Serge Gainsbourg fora uma aventura mais difícil nos dois primeiros álbuns pela exigência da tradução. Os dois últimos acabaram por ser mais descontraídos e ao mesmo tempo mais divertidos também, e foi essa diversão que todos os músicos levaram para o palco. Mais de duas dezenas de temas instrumentalmente tão diferentes, como The Song of Slur onde os violinos dão uma estrutura romântica, ou Coffee Colour e New York USA em que os ritmos latinos fazem a festa (maracas e bongô). O som do micro da vocalista esteve com alguns problemas durante boa parte do concerto, facto que não conseguiu fazer a devida justiça à sua doce e delicada voz. Mas felizmente que no magnifico clássico Bonnie and Clyde, estava tudo resolvido e foi possível desfrutar em pleno do dueto.
Uma noite de domingo chuvosa e uma semana que fora preenchida com concertos, inclusive nesta mesma sala, poderão ter sido algumas das razões que justificaram a pouca adesão do público a este concerto. O bónus foi para quem lá esteve e se divertiu, muito provavelmente não se irá esquecer. Uma excelente homenagem aquele que fora um artista completo e disruptivo, que marcou o seu tempo e revolucionou a musica popular francesa. Voltaremos a ver Mick Harvey e alguns destes músicos em breve.