Na passada 5ª feira foi o concerto de apresentação do primeiro longa duração da garota mais interventiva das margens do Sado. Cátia Mazari Oliveira é moça nascida e criada na cidade de Setúbal e intervém com aquilo que sabe fazer tão bem, escrever e cantar. Uma voz com uma estrutura multifacetada com fibras entrelaçadas em veludo e caxemira. Uma maturidade no timbre vocal, em que a melodia lhe sai sem esforço e é como se tivesse uma orquestra inteira nas cordas vocais. Escreve canções desde os 16 anos e adora compor para outros artistas, nomeadamente fadistas. As cantorias são já uma herança genética, pois as mulheres da família, a avó, a mãe e a tia, cantavam bem e “a vida tornava-se mais leve”. Não cresceu com muitos luxos e ténis de marca não abundavam lá em casa, mas na educação o pai sempre fez questão de investir e aprendeu a tocar piano na Escola de Música Lira, em Setúbal.
As dores que transporta nas estrofes são todas sentidas na primeira pessoa, histórias tatuadas na pele com amores e dissabores. Mesmo que algumas envolvam a tarefa hercúlea de escamotear o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, e confrontar os monstros que dele saíram. Uma música de intervenção que faz à sua “maneira” no embalo da sua voz, onde vai soltando os espinhos e afiando as farpas da critica política e social. As suas músicas atravessam vários ministérios, criticam os altos impostos e um serviço público de saúde que já viu melhores dias. O romantismo não é descorado, mas nada melhor que um dissabor para o refrão ficar mais composto e orelhudo.
Um megafone para as palavras de ordem, uma mesa com vinho tinto para uma boa conversa entre amigos e para uma partilha de desabafos. Uma rua desenhada em traço preto e fino, sob o branco da tela que se projectava no fundo do palco (artista Joana Baptista, Palmela). Uma rua dentro de muros com cravos, os mesmos da revolução que não presenciou mas com a qual cresceu e viveu, não fosse o seu bairro ter o mesmo nome – Bº 2 de Abril.
Estava no meio de um suspiro de alivio e de um nervoso miudinho, por finalmente chegar o dia do concerto no CCB, na “grande cidade”. Acompanhada por dois músicos seus conterrâneos, o baterista Diogo Sousa (colabora também com Mike El Nite e Moullinex) e o guitarrista Sérgio Mendes (Hands on Approach, João Pedro Pais e Um Corpo Estranho) aos quais teceu, ao longo do concerto, os maiores elogios. Uma plateia esgotada com muitas pessoas que vieram de Setúbal para continuarem “a mimar” a garota-mulher, mas também com algumas caras conhecidas do mundo da música. Entrou em palco a cantar, e a caminhar devagar aproximou-se de Sérgio Mendes que já estava sentado numa cadeira a tocar. Sérgio que, para além de músico é seu produtor, amigo, protector e cuidador (“o Sérgio cuida de mim”, diz).
Já ia na introdução da terceira música quando chamou ao palco uma dupla de vozes femininas que, segundo ela, combinaram na perfeição logo nos primeiros ensaios que tiveram dentro de uma station em frente ao Sado. E por falar em mulheres, “Que mulher é essa”, em que a “(…) a torta não cabe / a preta não cabe”, naquelas revistas onde só as mulheres perfeitas têm lugar. Esta foi uma música em que quis homenagear todas aquelas que, por não corresponderem ao cânones sociais da estética, não saem do anonimato.
“No dia do teu casamento” (primeiro single do álbum) juntou-se aos coros que estavam sentados à mesa e pediu ao público para cantar com ela, “esta vocês conhecem”. O refrão foi repetido várias vezes no final e o público correspondeu. A simplicidade dos desabafos serviu de elo entre as músicas mas também para partilhar as suas inquietações mundanas. A preocupação com o que iria vestir nesta noite foi um desses momentos hilariantes. A indecisão em comprar um vestido para mostrar as “pernas bonitas”, as mesmas que aparecem na capa do álbum, mas que afinal substituiu a compra por dois pares de ténis (risos). Os modelitos que vestiu em casa em frente ao espelho e as correntes de ouro que acabou por colocar no pescoço, “Cátia Mazari és mesmo do bairro” (risos). Escreveu o tema “Monstro” depois de ter lido o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, e “é preciso fazer psicoterapia” (risos). Tocou guitarra eléctrica e a bateria acompanhou com um som compassado a soar a um bongo.
Avisou que não faria pausa entre as duas músicas que iria cantar sem guitarra (e por isso menos nervosa) apresentando os dois poemas, um de Fausto Bordalo Dias “Porque me olhas assim” e “Casa de Mãe” do brasileiro Criolo. Uma observação que fez abanar as consciências de cada um que estava naquela sala, “Quando virem no telemóvel escrito – Mãe – não deixem de atender.” Mas para descontrair deste abanão emocional, brincou com o nome da música de Bordalo Dias (“Porque me olhas assim“) e o facto de não poder dizer aquela frase em Setúbal porque seria mal interpretado (risos). As interpretações foram ambas magnificas, mas “Casa de Mãe” foi um escalpelizar de alma que nos deixou com a garganta em nós. Depois da respiração normalizar, ouvimos uma música nova, que lhe surgiu do nada quando começou a bater com os pés e associou o som ao da marcha. Apesar de saber que José Mário Branco não gostava de homenagens, “esta foi a minha forma de homenageá-lo”, esta é a “Canção a José Mário Branco”. Levantou um cartaz preto com o refrão escrito a branco “Liberdade querida Liberdade / O nosso chão são sonhos e vontade.” Falou dos músicos que a influenciaram e que hoje em dia faz música de intervenção à sua maneira. “Já não estou a recibos verdes, mas estou na luta pelos que estão” e cantou a primeira estrofe por um megafone. “E aos meus olhos cobres de cinzento / os muros com cravos que cresci a ver”, e diz que ” (…) estes são os muros do Bairro 2 de Abril onde cresci.”
Quase a chegar ao fim, a “Carta aberta a um amor ausente” e “Adamastor” cujo videoclip realizado por Pedro Semedo e pelo colectivo setubalense GARAGEM, recebera o prémio de Melhor Videoclip no Arouca Film Fest. Ainda tempo para um agradecimento e uma piada ao roadie João Gabriel, que já tinha sido aplaudido pelo público logo no inicio quando foi colocar a guitarra do Sérgio no palco.
Depois de agradecimentos à sua agência, Produtores e Associados, à promoção e comunicação Sara Does PR, e às suas colegas de equipa (CM Setúbal) em que o apoio reforçado nos últimos tempos lhe permitiu estar mais focada na música. Aos técnicos de som e de luz. Aos outros músicos que lhe enviam mensagens de força e alento elogiando o seu trabalho (e que alguns estiveram também a assistir ao concerto). Para terminar escolheu “A morte não sabe contar”, uma música que escreveu para a sua mãe. Este teve um momento de dança muito bonito, com a participação de uma bailarina em que se movimentava em ritmos tribais. Mais um elogio a uma colaboradora, a Ana Polido, que foi a autora da capa do álbum. Tempo ainda para oferecer um CD a quem estava sentado no nº 8 da primeira fila, promessa que fizera a si mesma quando viu que ainda faltava ser vendido.
Retirou-se com os músicos e regressou em ovação, pelo público que se manteve sempre em pé. “Mediterrâneo” no encore, uma música triste e que aborda o tema dos refugiados. Confessa que a compôs para diminuir a dor daqueles que sofrem todos os dias. Mas diz, “para não saírem daqui com energias negativas, cada um tem um papel de baixo da cadeira para levar consigo.” Era a letra da “Canção a José Mário Branco“.
Uma noite onde tiveram lugar as lágrimas e as gargalhadas, uma noite com simplicidade e verdade. Nada foi esquecido, nem sequer o modelito que acabou por lhe assentar tão bem! Com uma simpatia genuína conseguiu contagiar-nos com o seu sorriso sincero, enquanto dava autógrafos e recebia “os mimos” dos conhecidos e daqueles que acabara de conhecer. É por tudo isto que a Cátia terá certamente um lugar e um caminho único na música portuguesa. E nós estaremos a seu lado para o testemunharmos.