Foi com um clima de medo e de incerteza para uns mais do que para outros, nesta semana em que a vida no sentido em que a conhecemos ameaça(va) parar. Uma vida em que poderíamos ir ter com os amigos, em que poderíamos ir ter uns com os outros, sem ser a um metro ou metro meio de distância, e em que vermos pessoas com máscaras em concertos nos pareceria tempos atrás ser bizarro e surreal… Hoje, com toda a agitação em redes sociais e a fobia de estar com o próximo, estar com os outros se instalou.
Foi nestes dias que o Lisboa Ao Vivo (LAV), recebeu os The Mission, banda à beira de cancelar todas as datas da sua digressão europeia que acabava de começar há uns dias, ou há pouco mais de uma semana, com eles traziam os Gene Loves Jezebel, banda que igualmente por cá não tem falta de historial ao vivo, e que em Lisboa e no Porto, certamente uns dias antes se previa uma digna enchente para estas datas anunciadas, e… seria um LAV a meio da sua lotação o cenário para o dramático mas efusivo fim desta tour, cheio de fans, alguns com máscaras, especialmente no segundo dia onde o clima de medo se instalou ainda mais na capital Lusitana.
Para quem vos escreve estas linhas são e livre de viroses (até mais ver), estas foram das noites mais divertidas. Os The Mission portaram-se à altura fazendo jus à reputação de excelente banda ao vivo que têm, com um Wayne Hussey talvez mais deprimido por estar à beira de cancelar a tour europeia e a dar o “litro” com os seus companheiros em palco, visivelmente mais profissional e sóbrio na segunda noite. Uns Gene Loves Jezebel em formato trio a mudar as regras ao jogo, desfalcados do guitarrista James Stevenson que haveria de regressar na segunda noite, bem dispostos e a contagiar o público com a sua alegria de estar em palco.
A noite de 11 de Março:
Chegados ao LAV, ficámos agradavelmente surpreendidos: estavam disponibilizados à entrada e lá dentro em localizações estratégicas gel desinfectante, o que ajudou no conforto psicológico nesta decisão de estar presente e não deixar que a vida parasse. Pelas 21 horas pontuais, lá estavam os Gene Loves Jezebel em palco talvez a dar o show mais singular da sua carreira pelo menos em Portugal, com bases electrónicas, o baterista dos Alarm e dos Archive na bateria, e Jay Aston e Peter Rizzo a percorrerem temas que se prestam mais a esse formato, ou seja, onde a ausência da guitarra de Stevenson se faria menos sentir. Entraram com Charmed Life, decalque electrónico de “Break The Chain” que abre o mais recente “Dance Underwater”, que em disco tem um propositado efeito de auto-tune mas que aqui ao vivo graças a Deus, a ausência do mesmo (e)levou a canção para outro nível. Das novas canções, destaque para “Flying” (que haveria nesta noite de resultar melhor do que no formato quarteto do dia seguinte), “Stephen” do álbum Imigrant, “Motion Of Love”, ou a fantástica versão de sete minutos de “Desire”. Acabaram com um inédito “You Can´t Hurt Me Anymore”, e saíram sorridentes e bem dispostos.
Por comparação, Wayne Hussey frontman dos The Mission, só se revelou mais comunicador a meio do espectáculo, visivelmente incomodado pelo facto de não ouvir a guitarra baixo de Craig Adams com a sua pujança habitual em palco, o suficiente em palco, ele e eu, pois estragou a pujança sónica de “Wasteland” com que abriram o concerto, assim, restou a bateria demolidora de Mike Kelly, as guitarras cortantes de Simon Hinkler e a guitarra e voz em agonia de Hussey com a sua interpretação dramática habitual… isto durante mais um par de temas até que o desfalque sonoro estivesse resolvido, tivemos por exemplo “Severina”, doce clássico do goth rock servido logo ali, ao início da cerimónia também, Hussey, até mais tarde, mais comunicador depois de ter despachado a sua habitual garrafa de vinho haveria de brincar com o assunto, dizendo que se sentia perdido sem o baixo de Craig Adams.
A nível das canções escolhidas, portanto, haveriam de incidir nos álbuns ímpares nesta primeira noite com algumas excepções pois isto é roc´n ´roll servido com alguma da imprevisível dose de perigosidade extra (o Covid-19 está aí e eu contínuo a fazer a tour pelos dispensadores de gel de mãos que irá certamente salvar a minha vida…), e entretanto oiço “That Tears Shall Drown In The Wind”, do álbum mais ignorado dos The Mission, Blue, óptima canção com as guitarras a soarem aos The Shadows, com efeito, a banda hoje conta um set list tão forte e a ocasião é tão inusitada que nem presto muita atenção ao sempre belo “Butterfly on The Wheel”… e está um pequeno contingente de Eskimos, assim eram ou são chamados os acérrimos fans ingleses da banda presentes na sala, e dos concertos que vi de Hussey & companhia, penso que é a primeira vez que estão presentes, afinal isto é Lisboa e não Londres. Fazem a festa despreocupadamente, ajudam a descontrair, somos todos loucos e irreverentes por aqui estar a celebrar a vida, penso, enquanto oiço “Deliverance”, seguido do entoar do público do verso final dessa canção enquanto Hussey num momento de mestria com a audiência, sozinho senta-se ao piano, irrompendo por uma versão a solo de Depeche Mode “Never Let Me Down”, para rematar seguiram-se depois no primeiro encore “Blood Brother”, “Belief” e “Marian” dos Sisters Of Mercy, e dancei que me fartei nesse tema, fecharam depois com “Tower of Strenght” no segundo encore, e se pensava que não me podia divertir mais na noite seguinte, estava enganado.
A noite de 12 de Junho:
Com a tour oficialmente cancelada, entrámos no LAV para a segunda noite com menos pessoas e com o maior alarmismo a ser ventilado pelos meios de comunicação social, e eu, enquanto escrevo estas linhas espero sinceramente que todos se encontre bem. Foram com efeito duas excelentes noites. Pelas 21 horas entram novamente os Gene Loves Jezebel, agora no formato habitual, ou seja, em quarteto com James Stevenson a trazer mais rock´n roll às canções da banda, Jay Aston em boa forma vocal tal como na noite anterior. Em alguns temas o “estreante” baterista da banda, Smiley, neste formato ainda a demonstrar estar verde em alguns pormenores mas a compensar com a sua força na tarola e alguns breaks mais inventivos. “Twenty Killer Hurtz”, “Sweet Rain” e “Jealous”, casam bem com as mais recentes “Flying” e “How Do You Say Goodbye to Someone You Love”, dos anos 80 recuperaram “Cow”, “Motion Of Love”, e claro, “Desire”. Foi um concerto enérgico que só poderia ter terminado com “Break The Chain”. Novamente a banda goth menos goth que conheço deixou todos com um sorriso no rosto e saíram também eles sorridentes do palco.
The Mission. O que dizer. O som bem equilibrado desde o início com “Beyond The Pale”, Hussey mais sóbrio e incisivo na sua performance vocal, em plena forma, a boa disposição dos Eskimos presentes na audiência, contrastava com algumas pessoas com máscaras a assistir no andar de cima, imóveis como que hipnotizadas pelo espectáculo a que assistiam. Não tenho dúvidas que esta segunda noite foi um dos melhores concertos que os The Mission deram em Portugal, e se na noite anterior havia sido muito bom, hoje, a escolha das canções e a energia dos músicos foi factor de excelência, talvez por esta noite ter sido o fim abrupto da digressão. Canções essenciais como “Naked And Savage”, “Wake”, “Afterglow”, e novamente “Wasteland”, esta, já no encore, fizeram o pequeno gótico que há em mim alegrar-se: “Swan Song”, a melhor canção gravada pela banda nesta década fechou o concerto antes dos encores em que tivemos “Stay With Me”, “Bird Of Passage”, a já referida “Wasteland”, e naturalmente “Tower of Strenght” a encerrar no segundo encore.
Duas noites memoráveis justificam uma menção especial, ou um obrigado à House Of Fun e a todo os Staff presente no LAV, pela decisão de manter estes eventos no limite dando a opção de quem quisesse comparecer o fizesse, pela forma como receberam todo o público presente, antes que a música acabasse e a vida ficasse suspensa. Um bem haja. Vemos-nos todos num próximo concerto qualquer, as coisas retomarão à normalidade, retomam sempre.