André Cajarana, para quem não se lembra, era uma personagem da novela brasileira “Pai Herói” (1979) e segundo o próprio André Henriques, durante algum tempo foi chamado assim: Cajarana. No fundo não há uma relação conceptual entre a personagem e a narrativa do álbum, é apenas uma relação de nomes, mera curiosidade.
O André, o Henriques, já nos habitou aquele cantar de voz arrastada meio séria e circunspecta. Cajarana é um álbum assim, como a sua voz. Tem a seriedade da vida quotidiana, o lado mais negro das estórias comuns, as caricaturas delirantes de filósofos e estórias simples narradas sob a insignia do mais comum dos mortais. Canta um fado realista de sofrimento individual, como um leal português que compõe as suas mágoas numa prosa cantada junto à proa, com o horizonte na outra margem do Tejo.
Começa com um “Espelho Meu“, entre as cordas frias e cruas da guitarra que acompanham a mesma frieza da voz. Acordes simples como se se reflectissem num eco meio opaco, a eterna procura de uma identidade, um simples “quem sou? (…) esqueço-me sempre”, que termina com o corte de lâmina certeiro sem reticências.
Uma estória de amor ensanguentada, que poderia ser do quotidiano de um qualquer país da América Latina. Uma morte anunciada que se esgota na paixão sedutora entre duas pessoas que não se conhecem. Assaltos com mãos ao ar, ” E de repente” disparos de armas escondidas e balas perdidas que atravessaram o seu próprio corpo o qual visualizámos no último take. A batida em jeito de western, alinhou-se no compasso crescente da voz que narrou em golfadas de oxigénio.
Um desejo comum a tantos mortais, quando são confrontados com as horas fugazes que ficam nas sobras do dia-a-dia, é o tempo que tantas vezes falta. Obrigações que ficam presas à responsabilidade de assumir a descendência directa de peito aberto e a realidade das tarefas direcionadas aos seres mais pequenos. São dois temas seguidos num desabafo continuo, “Uma Casa na Praia” se não fosse ” a escola dos putos” e um “Tecido não tecido” num som de embalar em crescendo, embrulhado em “máquinas de lavar” e nos “biberões e muitas papas depois”.
“As melhores canções de amor são as mais tristes (…) e já foram escritas”, frases que deslizam na voz sobre acordes tão bonitos que vão escamoteando as veias do coração. As notas sobem e descem numa espécie de baloiço até se focarem na distorção da guitarra a fazerem lembrar, inevitavelmente, outros ritmos (Linda Martini).
“Pais e Mães e Bichos” é uma música de uma intensidade incrível, daquelas que nos deixa a garganta seca e a respiração em suspenso. É daquelas músicas que semeia farpas aguçadas sem definir o trilho, que manda as setas sem cupidos, que nos corroí o ventre em cada estrofe musicada. É uma verdade que se canta na tristeza ou a tristeza que se canta com a verdade, não sei, mas podem ser ambas as coisas. Uma guitarra ao fundo em gemidos graves que estrutura a melodia, uma bateria que se solta numa marcha melancólica. E num silêncio gélido, “Vi um cão vádio correndo atrás dos pombos / quem pode ser livre se domesticar os sonhos”, como se este fosse o verdadeiro sentido da liberdade. E as verdades seguem sem dó nem piedade até ao final: “Folgam quando alguém mandar / Fodem quando houver vagar / Casam para procriar / Morrem, cedem o lugar há sempre outro para pegar / Isto não pode parar/ Pais e mães e bichos.”
“Maria Odete” é uma valsa curta e breve. Uma homenagem a tantas mulheres que viram os seus sonhos transformarem-se em vazios de nada. A mulheres que tratam o sofrimento por “tu” e vêem no fingimento uma defesa instintiva de sobrevivência. A mulheres que filtram o olhar nos óculos escuros e que não querem dar dois dedos de conversa. Esta é uma valsa dedicada a todas as “Marias Odetes” desta vida e que, infelizmente, são muitas.
O medo é um tema latente nas estrofes de “Para me aleijar”. O medo de ser transparente, o medo de dar, o medo de amar e o de sofrer depois. O medo como se fosse uma defesa natural, em que nos protegemos mais e tentamos não correr riscos desnecessários. Mas ao mesmo tempo um medo cobarde que nos impede de agir e reagir. E por falar em cobardia, temos um Platão esquecido “no fundo de um gin”. Numa solidão tropega de ironia, caminha cambaleando ao som de uma guitarrada seca e simples, intrinseca nos acordes do rock.
Para o final três faixas que fecham esta duzia de temas de Cajarana. “O Seu Melhor Chapéu” é uma história comum de desemprego, de um “Zé” um personagem-tipo que engrossa as estatisticas das perdas de vidas “sem sossego” pelo “perda do empego”. Num ritmo muito mais de rock n’roll, “De Tudo o que Fugi”, para dançar em movimentos energicos. Um terminus carregado de um silêncio d’alma, “Pese Embora“. Uma melodia tão delicada como o amor solitário, aquele que deve ser tocado com pinças para não estragar as pequenas farpas que emergem dos acordes, meio sumidos numa simplicidade repleta de harmonia.
Cajarana foi composto num brevíssimo espaço de tempo. Em apenas dois meses André Henriques compôs este colectivo de canções quase de um trago e de uma forma crua e verdadeira. Não arrastou as idas ao estúdio para “limar arestas” de modo a que o resultado saísse limpinho e certinho. Não, não foi isso, o que fez foi agarrar com unhas e dentes aquele rasgo de criação e beber com sofreguidão a sua mais pura e intima interpretação. Este é um álbum muito seu, de dentro e de todas as redondezas da sua vivência. Passaram três meses desde a sua edição, mas iremos esperar aqueles que forem necessários para o ouvir ao vivo sem ecrãs a separar-nos. Cajarana foi também a minha quarentena.