“I spent my life trying every way to die”
As lições que vamos aprendendo, os buracos onde vamos entrando, os caminhos certos e errados são aquilo que nos constroem e nos moldam enquanto pessoa. Mas isto não é novidade para ninguém! O dom está em podermos fazer da dor, para além de aprendizagem, arte.
Há um senhor que entre muitos dons que tem, consegue transformar a cruz que carrega ao ombro de uma vida de abusos e de troca de olhares com a morte naquela que é a arte que melhor me faz, a música. Aos 55 anos Mark Lanegan decidiu compilar toda uma vida de aprendizagem e dor num só livro numa espécie de tentativa de libertação de alguns demónios, penso eu. Esse livro chama-se Sing Backwards And Weep e deu origem aquilo que ele afirma ser a extensão da sua autobiografia, o seu 12º disco – Straight Songs Of Sorrow. Este título prepara-nos para o que vamos ouvir, mas não nos prepara para a digestão que vamos ter de fazer.
A melancolia que o acompanha há anos musicalmente está a dissipar-se aos poucos, virando a direcção para um caminho mais electrónico. Somebody’s Knocking, lançado em 2019, assume uma vertente dançável e leve com bastantes ritmos electrónicos e extremamente focada nos sintetizadores. Straight Songs Of Sorrow vai beber aí muito subtilmente, numa espécie de desvio meio Depeche Mode, mantendo um registo mais diversificado ao longo do disco. Não encontramos a melancolia a que nos habituou, mas encontramos um folk, um country, um art rock, um post punk e um electrónico. Em todos os registos a melancolia permanece na lírica e na expressão vocal. A voz de Mark Lanegan, impossível de não se tornar viciante, é algo que, tal como ele, carrega demasiadas histórias, estórias e criação artística.
Straight Songs Of Sorrow é um álbum de difícil digestão. É um álbum que nos vai colocar em muitos locais ao lado de Mark. É um álbum de experiências que não são boas. É um álbum de falta de contraposição entre a falta de esperança e a esperança como única arma. É um álbum que nos vai ensinar a ser melhores pessoas. É um álbum que nos vai apertar o peito. É um álbum que nos vai humedecer os olhos por tamanha beleza que carrega ao lado da amargura. É um dos álbuns do ano!
Quem conhece Mark sabe que ele não se priva de partilhar a sua magia com bandas e artistas, contando inúmeras parcerias ao longo dos anos. Para a construção desta peça de arte foi a vez dele contar com vários amigos como John Paul Jones dos Led Zeppelin, Warren Ellis companheiro de estrada de NIck Cave, Adrian Utley dos Portishead, Mark Morton dos Lamb Of God, entre outros.
Nesta jornada intensa transcrita em 15 músicas vamos encontrar temas negros e profundos com algumas sonoridades mais leves a fugir para uma alegria ténue e outros com sonoridades pesadas, tristes com uma camada de amargura quase translúcida mas, também, quase palpável.
“I Wouldn’t Want To Say” é a primeira faixa do disco e a mais robótica libertando uma melodia bonita que se contrapõe à voz bagacenta de Mark. “Apples From A Tree” é uma das faixas mais intimista e bela! É a mais pequena do disco também e, se calhar a mais folk. Os momentos seguintes são de partilha com a sua esposa, com quem canta, de uma música que fala de amor, mas não num bom sentido. Os coros aqui trazem um brilho diferente e mais intenso ainda. A música seguinte é extremamente forte e directa e fala de ketamina! “Bleed All Over” deve ser a música com mais essência Depeche Mode do disco, num registo mais 80’s deixando uma leve vontade de abanar a anca. Mais à frente encontramos um caos mental e uma música mais experimental com algum cheiro a Thom Yorke com “Internal Hourglass Discussion” antecedendo aquela que, na minha opinião, é a melhor e mais intensa música do disco. “Stockholm City Blues” tem violino, tem lágrimas, tem extrema beleza, tem dualidades internas e externas e tem muito peso. Com esta música vejo-me parada no meio da rua com o mundo a viver 10x mais rápido à minha volta e consome-me uma esperança vazia de que algo vai acontecer enquanto tenho o peito e a alma num aperto desesperante, ao mesmo tempo que me sinto quase a levantar os pés do chão.
Esta parece que é a fase da ansiedade porque a faixa seguinte, “Skeleton Key”, a maior do álbum, também não facilita na mensagem extremamente dura numa bolha de falta de amor próprio grotesca. Creio que é uma música para o mundo e que serve de espelho, em paralelo, ao próprio Mark. Quase a chegar ao fim aparece uma música com tonalidades mais country com “Hangin On” os ânimos acalmam ligeiramente com o violino e o piano suave mas denso de “At Zero Bellow” e o disco termina com uma música de libertação na sua forma mais pura. “Eden Lost And Found” é uma música algo celestial tocada a órgão, estrategicamente escolhida para encerrar este ciclo de libertação de peso da cruz e de possibilidade de poder olhar para a luz do sol e conseguir caminhar sem ter de olhar para trás. Não sabendo eu se esta é a intenção de Mark Lanegan, mas desejando que sim! O disco termina com a frase “everybody got to be free!” mostrando que a música pode, para além de ser uma arte a apreciar e saborear, ser um modo de libertação único!
Que a vida nunca te impeça de partilhar o teu dom e que esta obra prima te tenha ajudado tanto ou mais do que nos vai ajudar a nós!
Podem ouvi-la aqui.
Fotografia (capa) – Travis Keller