Backstage

Entrevista a Samuel Martins Coelho, O violino como amor e temor

Depois de dissecado o disco que nos trouxe uma Cura em forma de ondas sonora, surgiu a oportunidade de podermos falar com Samuel Martins Coelho, músico profissional, violinista, colaborador em diversos projectos e com uma carreira a solo agora mais recente. Foi a propósito do seu regresso aos palcos e festivais com Cura na mala que decidimos perceber melhor o seu percurso e a sua maneira de sentir o violino. 

Música em DX (MDX) – Em 2019 decidiste lançar o teu primeiro disco a solo com violino. Queria saber o que te levou a tomar essa decisão ou necessidade de deixar o colectivo e ter uma coisa em teu nome, só tua. 

Samuel – Tenho de fazer uma viagem temporal para chegar a esse sítio. A minha formação é clássica, eu sempre estudei violino, foi o único instrumento que estudei academicamente. Estive envolvido em várias orquestras, fiz vários concertos a solo e esse percurso deixou uma pequena marca, um certo medo que eu tinha de tocar aquele instrumento porque, nem sempre, me sentia capaz e confiante de pegar nele. Isto vinha de várias razões mas, principalmente, por causa da disciplina e método com o qual estava habituado e da exigência que nos era pedida enquanto estudante e, depois, enquanto profissional.
Depois, como disseste e bem, sempre estive envolvido em projectos colectivos desde duos, trios, quartetos, ensembles, e o que despoletou isto foi mesmo uma fase que passei e pela qual ainda estou a passar. Foi-me diagnosticado pânico e ansiedade em 2018. Estive num sítio bastante escuro e depressivo e, na altura, tive uma espécie de epifania e decidi que ia gravar um disco onde pudesse exorcizar tudo o que estava a passar e, se calhar, pela primeira vez na minha vida, a música teve um sentido terapêutico na ascensão da palavra, não era só uma coisa espiritual ou emotiva, mas começou a fazer parte de uma certa terapia. Na altura ainda não sabia que instrumento iria usar e como estava em auto análise, em processo de psicoterapia, comecei a enfrentar os meus medos e um deles era o meu instrumento e daí ter decidido fazer um disco a solo com o violino. Foi um desafio exigente e interessante o de perceber como é que eu podia compor num instrumento só e, de certa forma, manter a música interessante e ter uma escrita que não fosse monótona. Também fazer um bocado este salto de enfrentar os meus medos e dignificar o meu instrumento. Contribuindo de uma forma mais humilde para a escrita violonística porque é um instrumento que, de certa maneira, está um bocado estilizado, não é propriamente um instrumento que tenha uma escrita mais contemporânea e isso ajudou-me a redescobrir ou descobrir outra linguagem que tinha e não sabia.

MDX – Será que essa linguagem que descobriste e que te fez fazer estes dois discos, te ajudou a perder o medo e a falta de confiança no violino?

Samuel – Ajudou-me imenso por uma questão muito simples: na verdade, todas estas questões existenciais pelas quais nós passamos são tão estupidamente simples que até irrita! No meu caso, por exemplo, eu deixei de me comparar. Só esta simples coisa de já não ter a necessidade de me comparar aos outros, no sentido de estar bem ou mal, porque estou a tocar a minha música. Por isso não me posso comparar a ninguém porque, nesse sentido, sou único como outros músicos são únicos quando se expressam de uma forma mais sincera, talvez. Não ter de me comparar diminuiu a carga de uma forma brutal. 

MDX – Acho que, muitas vezes, somos nós que criamos as nossas próprias amarras. Noto isso nos artistas com que lido e amigos músicos ou artistas que vou conhecendo por esta via. Têm essas amarras que vocês próprios criaram. Depois, às vezes, as pessoas ficam presas de tal maneira que não conseguem chegar a um patamar onde possam ser felizes. 

Samuel – Também há aqui uma coisa que foi muito difícil para mim aceitar, que foi eu perceber que tinha um ego gigante! Supostamente eu venho de um mundo mais elitista, da música clássica, e trazia esse ego comigo e era super arrogante, tenho essa consciência. Tudo o que não fosse incrível, não merecia o meu respeito sendo que isso é completamente parvo porque quem sou eu para estar a ter este tipo de comportamento? Comecei a perceber isso e, neste momento, a minha perspectiva mudou em relação a isso. Se as pessoas não gostarem do que eu faço, não é problema meu. Eu fiz isto e há uma consequência que é as pessoas gostarem ou não gostarem, se não gostarem, está tudo bem e tento perceber nos concertos porque é que gostam ou porque é que não gostam. Eu respeito-me a mim e é respeitando-me a mim respeito a minha arte numa forma mais abrangente. Eu sou insignificante, se morrer hoje o mundo continua tranquilo da vida. Antes achava que não. 

MDX – Achas, então, que conseguiste encontrar uma forma de cura, assim? E daí ter vindo este segundo disco com esse nome?

Samuel – Sim! Este segundo disco tem a ver com o processo anterior, depois de ter feito psicanálise, de estar a ser seguido por um psiquiatra, tomar medicação e essas coisas todas. Comecei a mudar o meu estilo de vida porque comecei a perceber porque cheguei a este ponto. Demorei muitos anos a perceber mas consegui perceber! Comecei a fazer meditações conscientes, a modificar hábitos, comecei a exercitar os músculos do meu cérebro, comecei a ler muita filosofia e tanto como no primeiro disco, cada música retrata um episódio específico das minhas crises, este disco retrata uma série de epifanias pelas quais eu tomei consciência. Ou seja, é um disco de consciencialização daquilo que me rodeia e de como é que quero estar agora perante a vida e perante o meu dia-a-dia. 

MDX -À pouco disseste que não tinhas na música algo terapêutico, mas agora podes ter, certo? 

Samuel – Eu expliquei-me mal. A música sempre foi terapêutica no sentido emocional e de uma pessoa saudável. Esta foi a primeira vez na qual a música me ajudou por eu não estar saudável. É neste sentido. A música ajudou-me a ir mais fundo na minha mente e na minha consciência do que nos outros episódios, porque nos outros eu estava bem, era “lazer”, curtir, divertir, aqui não! Foi a primeira vez em que foi uma corda para eu sair de um poço, é mais neste sentido.

MDX – Tendo já chegado a uma espécie de cura, a partir de agora vais olhar para a música sempre numa espécie de cura/salvação?

Samuel – Acho que a cura é uma coisa que vais descobrindo todos os dias. Eu não sei se a música vai começar a ser um tipo de cura ou se eu vou procurar naquilo que me rodeia também um tipo de cura. A falar contigo, a falar com outras pessoas, a usufruir de um momento. A música é só uma consequência. Eu sou músico, é uma coisa que já está inata, quando eu digo consequência, se calhar não me estou a expressar bem, mas é algo do género de que estes discos nasceram por causa de um estado emocional, ou seja, eu não pensei que sou músico e vou fazer música a pensar nesta temática, aqui o processo foi ao contrário. Eu estava muito mal, não encontrava soluções nenhumas e por acaso sou músico e consegui trabalhar isso em forma de música, é nesse sentido. Claro que a música não é uma consequência mas no sentido da criação, neste caso, foi uma consequência. 

MDX – Costumo dizer que as obras mais bonitas na música e na restante arte mas principalmente na música são feitas em dois estados: ou num estado bastante depressivo ou num estado bastante feliz. Sendo que o meio termo, neutro, traduz-se numa não transmissão às pessoas. Concordas com isso? 

Samuel – Concordo! Também acho que há muita música alegre ou esperançosa que é feita num estado completamente deplorável, ou seja, concordo plenamente com isso! A música que perdura, digamos assim, é uma música que veio de algum sítio lá dentro que muito pouca gente tem acesso. Apesar de também achar que não é preciso estar assim, por exemplo no mundo clássico, nas sinfonias e nas obras que são pesadíssimas, o compositor não passa por essa experiência em específico, ou seja, há diversas maneiras de chegar lá. 

MDX – Vindo tu da música clássica e, apesar de a Lovers & Lollypops explorar bastantes coisas diferentes, como foste parar a esta editora, como se gerou essa ligação? 

Samuel – A ligação começa para já através de festivais onde ia assistir ou de bandas que gostava de ouvir e descobri esta editora. As nossas vidas já se andavam a cruzar porque eu tenho trabalhado no festival Tremor com a Onda Amarela, no qual temos feito os nossos espetáculos com a comunidade, neste caso, mais ligado com a Associação de Surdos de São Miguel e com a Academia de Rabo de Peixe e aí fomos já desenvolvendo uma ligação. Já sabíamos quem éramos e quando lancei este disco, para mim, fazia todo o sentido! Foi a única editora que contactei e eles aceitaram e estou muito contente de poder estar numa label que pensa um pouco como eu penso. Não sei se é por eles ou pelo leque de artistas que têm, que começamos já a ver, por exemplo, concertos de bateria a solo e a nascer outros formatos de projecto. Pessoas a darem a conhecer um instrumento. 

MDX –  Tu tocas sozinho ao vivo não é? Com loopstation

Samuel – Sim! O que eu faço é: no primeiro disco usei só o violino e neste disco, como precisava de ganhar algum oxigénio no violino, utilizo uma guitarra acústica e uma guitarra eléctrica, sendo que tenho os dois formatos: se for viajar de avião ou a concertos mais longe eu tenho escrito um formato só para violino mas que será um plano B porque para mim faz-me sentido utilizar como está. Uso a loop de forma não tão usual, uso várias loops e gravo tudo em tempo real. 

MDX – Vais apresentar o disco aqui em Lisboa? 

Samuel – Já tive algumas oportunidades de ir a Lisboa, mas em conversa achei que os sítios não seriam os mais indicados para poder apresentar a minha música porque eu preciso de um espaço mais controlado. Mas tem corrido tudo bem, tenho feito alguns concertos e tem sido uma experiência espectacular. 

MDX – As pessoas estão a reagir bem? tens algum feedback disso nos concertos?

Samuel – Incrível! melhor era impossível. Para já porque é uma maneira diferente de ver um instrumento com uma história tão erudita com a abordagem que eu tenho. Depois porque acho que, de certa forma, as pessoas que têm ido ver são pessoas que fizeram alguma pesquisa e então conhecem a história e relacionam-se com ela e mais do que a música, tem sido uma partilha quase silenciosa de quem ouve e cria a sua própria bóia de salvação e, para mim, tem sido muito bonita esta partilha invisível. 

MDX – Como estás de datas? 

Samuel – Tive em Leiria no dia 4 de Julho, no Festival A Porta,  e tenho dia 11 de Setembro nos Açores, no Festival Tremor. Em Agosto também não estou disponível para tocar e depois daqui a uns dias também vou lançar outro disco. 

MDX – Tens um registo diferente para festival ou será o mesmo de uma sala? 

Samuel – Nem sequer pensei nisso, de festivais grandes, mas se calhar pensando bem, devo fazer alguma coisa, não tocar sozinho por exemplo. Mas em festivais pequenos será o mesmo que em sala. O que eu mudo sempre nos espetáculos todos é o momento de improviso para o qual eu reservo sempre um tempinho. Não sigo o disco na íntegra. 

MDX – Em relação à pandemia, como é que lidaste e estás a lidar com a pandemia enquanto músico e enquanto pessoa que viu a sua vida profissional parada, alguma dela pelo menos, e enquanto pessoa que estava a passar por um processo de confronto individual e luta com demónios internos? 

Samuel – Vou dar-te uma resposta fazendo só esta nota: tudo o que eu vou dizer não invalida o facto de a pandemia ser algo grave e mau.
Posto isto, para mim foi altamente! Porque quando surge este primeiro confinamento e eu me vejo forçado a parar, foi extremamente bom porque estava mesmo a precisar disso! Eu tenho imensos projectos, trabalho imenso e até à data eu sou perfeccionista. Quando parei foi bom por vários motivos: porque tinha de parar porque estava num estado depressivo brutal e depois para não me sentir culpado por não fazer nada porque toda a gente estava a não fazer nada! Comecei a utilizar este tempo para fazer coisas que habitualmente não fazia, como usufruir da minha casa, saber o que era estar em casa, pintar a casa, uma data de coisas! Depois durante este processo escrevi mais três discos e foi bom porque tive tempo para me descobrir e perceber o que é isto de ser músico, porque acho que durante muito tempo não percebia, porque me culpava muito por não estar a fazer nada no sentido de lazer ou simplesmente não fazer nada e se eu não tiver esse tempo de ócio, eu não consigo criar. Preciso desse tempo para poder absorver outras coisas, experienciar coisas para depois poder ter algo para dizer nos discos. Outra coisa positiva foi que descobri que, como Samuel Martins Coelho, para já, só vou fazer discos autobiográficos, ou seja, coisas que tenham mesmo um impacto em mim. Se calhar é um pouco egoísta, mas neste formato eu quero falar muito sobre experiências. Em termos da classe e da arte, parei e estive muito tempo parado. Estive muito tempo parado economicamente mas não estive parado em casa, estive sempre a criar numa perspectiva diferente! Pela primeira vez, em muito tempo, comecei a tocar porque me apetecia, não era porque tinha coisas para fazer.
Depois, o que aconteceu não é nada de novo, eu desde os meus 20 e tal anos que sou trabalhador a recibos verdes na música, eu nunca fui outra coisa a não ser um trabalhador intermitente, nunca tive um contrato, muitas vezes sujeitei-me a condições de trabalho menos boas porque tinha a ilusão que ia ser bom para mim e portanto, para mim, pessoalmente, não é nada de novo o estado não te apoiar, trabalhares por pouco dinheiro, teres um mês de trabalho bom e depois estares três meses parado. Sempre foi assim e o que isto veio fazer foi só demonstrar a nossa fragilidade no sentido de que se há uma pecinha que avaria por um mês estás tramado! O que eu espero, sinceramente, e se calhar vou parecer um pouco arrogante, mas não é de todo, é que de uma vez por todas termos de nos começar a respeitar e a deixar aquelas ilusões de que isto é bom porque vai dar notoriedade, publicidade. Ou seja, deixar de tocar para a fotografia. Não estou a dizer para cobrarmos cachets megalómanos, não é nada disso! Mas quando fores tocar, pelo menos tens de ter as condições necessárias para poderes tocar. Isto é  tudo efémero e não podemos estar dependentes do estado. Para além disso, há que deixar de trabalhar para o umbigo e os músicos devem começar a ver os concertos dos outros músicos, começar a comprar os discos dos outros músicos, pagar os bilhetes para ir aos concertos dos outros músicos. Isto, para mim, sempre me fez muita confusão. Devemos acabar com as borlas, porque é isso que tu vais querer quando fores tocar também. Isto, também, nos dá uma opção, a partir de agora eu é que opto por querer ir tocar de borla ou não, sou eu que escolho se quero tocar nalgum sítio ou não. Deixou de ser a escolha do dinheiro e isso dá-me um poder brutal e é isso que acho que os músicos deveriam ter.
Mas para resumir, foi bom. Veio mostrar uma realidade que não era muito diferente. Espero genuinamente que tenhamos uma atitude mais correcta em relação a toda a máquina musical e dignificar-nos, respeitar-nos e começar a ver concertos uns dos outros também não era mau!

Podem ouvir e adquirir o disco Cura aqui e ficar atentos para o que vem a seguir.