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“Crock of Gold : A Few Rounds with Shane MacGowan” de Julien Temple no IndieLisboa’21

Shane MacGowan é definitivamente dos músicos compositores contemporâneos mais enigmáticos e cativantes. Uma vida fascinante que o caracterizou como de herói trágico, mas também como alguém envergonhado o suficiente para não querer protagonismo mediático. Complexo, criativo, terreno, sensível, patriótico. Crock of Gold é um documentário genuíno sobre as várias facetas do ex-vocalista dos Pogues, sobre o seu amor visceral à Irlanda, a sua relação de amor-ódio com Inglaterra, a sua devoção a Deus e ao Punk que surge como uma tábua de salvação na sua vida.

O realizador Julien Temple conseguiu a proeza de documentar momentos singulares e estados de alma de Shane com uma subtileza (quase) romântica. Habituado às vicissitudes tão próprias do Punk, e a proximidade com as bandas punks britânicas, Temple conseguiu transportar para a tela as vivências frenéticas do mundo punk britânico, tanto no “The Great Rock ‘n’ Roll Swindle” (1980) como no “The Filth and the Fury” (2000), ambos os documentários sobre os Sex Pistols. O desafio de fazer um documentário sobre Shane MacGowan emerge também da cumplicidade e amizade de Johnny Deep com o próprio Shane, sendo ambos amigos de longa data (30 anos), e da vontade do actor de ser um dos produtores do filme. E é também essa cumplicidade e essa relação duradoura que proporcionou as condições perfeitas para que este filme não fosse mais um documentário sobre  Shane Macgowan e os Pogues (essa história está contada em “If I Should Fall from Grace – The Shane MacGowan Story” de Sarah Sahre, 2001  e “The Great Hunger”, BBC 1997 de Mike Connoly). Aliás, segundo consta, nenhum dos elementos dos Pogues quis ser entrevistado neste documentário. Os relatos de Shane surgem de uma forma muito descontraida e divertida, durante as conversas (gravadas) com amigos como Bobby Gillespie (Primal Scream) que não correu muito bem; Gerry Adams (politico irlandês lider do Partido Sinn Fe’in do IRA) e familiares (Victoria Mary Clarke, sua mulher). Shane nunca permitiu entrevistas num formato Q&A, nem ser direccionado por Julien Temple. Intercaladas com estas conversas surgem as entrevistas a Siobhan MacGowan (irmã) e Maurice MacGowan (pai), Therese Macgowan (mãe) e Ann Scarler (biografa dos Pogues), que nos contam alguns momentos marcantes da vida do músico.

O olhar distante que atravessa todos os grandes planos de Shane, é muito mais do que alguém que tornou a embriaguez o seu modo de vida. É um olhar submerso numa história de antagonismos, numa infância rodeada de afectos familiares e de um ambiente idílico em Tipperary na Irlanda onde os animais da quinta faziam parte da sua casa de família. De brincadeiras na imensidão dos dias de verão e na liberdade da vastidão dos campos e no refúgio seguro dos troncos das árvores centenárias, cenas que são narradas com uma animação fabulosa do menino que nasceu no dia de Natal e aos 6 bebeu cerveja pela primeira vez. É um olhar de uma adolescência conturbada, carregada de ansiedades na negação de um país que nada lhe diz e em depressões sucessivas. A adaptação de Shane à vida citadina de Londres foi dolorosa, não gostava da escola nem da cidade, apesar de ser um excelente aluno em Inglês que lhe valeu um prémio literário do Daily Mirror e uma bolsa de estudo para a Westminster School com apenas 13 anos. Situação que não lhe trouxe momentos de felicidade, aos 15 anos foi convidado a sair acusado de tráfico de droga (com troca de anfetaminas à mistura e uma nomeação para Ministro da Tortura, talvez os únicos episódios prazerosos que teve por ali). As expectativas eram poucas e os dias alternavam-se entre trabalhos pesados (na construção civil para Tio Jim que contratava irlandeses a baixo custo) e consumos excessivos de tudo o que poderia alterar o estado de sobriedade deprimente. Quando saiu do hospital psiquiátrico, o punk emergia e as ruas londrinas começavam a ser invadidas por grupos de jovens com visuais excêntricos. Era o nascimento de Shane O’Hooligan! O blusão com a bandeira de Inglaterra criou a sua imagem de marca nos moshes dos concertos dos Sex Pistols, e a cena hilariente da orelha rasgada deu-lhe a capa da NME como um acto de canibalismo e rapidamente se torna um ‘fenómeno cultural’ começando a sua própria banda, os Nipple Erectors (Nips).

Depois dos Nips e com o surgimento da musica pop electrónica, só havia a alternativa da música do mundo, como a afro musica e a musica da america do sul. Era o momento de transformar musicalmente todo o orgulho que tinha pela Irlanda (a dada altura diz que uma das coisas de que se envergonha foi não ter sido activista do IRA) e pelo povo irlandês. Uma homenagem à musica tradicional irlandesa que se misturava com a crueza e energia da música punk. Um culto aos milhares de irlandeses imigrantes que viviam em Inglaterra e que durante décadas foram as anedotas dos britânicos, qual Paddy Pour. “They want a drunken Paddy, I’ll give ’em a fucking drunken Paddy!”  Os Pogues fizeram renascer as festas irlandesas das sextas-feiras à noite, encharcadas em guiness e suadas pelas danças dos corpos frenéticos. Shane MacGowan foi a primeira voz irlandesa a dar energia à musica irlandesa e a dar-lhe um sentido poético. “Rum, Sodomy & the Lash” (1985) e “If I Should Fall From Grace With God” (1988), álbuns que os levaram ao topo das melhores bandas britânicas da época e acompanhar os The Clash e Elvis Costello. Frank Murray leva-os pelo mundo mas também à exaustão, num ano dão 363 concertos: “O Shane não voltou”, comentário da sua irmã quando, com tristeza, acrescenta que teve que o internar “o médico dava-lhe 6 meses de vida”.

Já na parte final, imagens do concerto em sua homenagem na comemoração dos seus 60 anos (onde canta “Summer in Siam” com Nick Cave), em que recebe o prémio carreira pela mão do Presidente da Irlanda e as lágrimas lhe caem com emoção – um embaixador cultural da Irlanda no mundo. Julien Temple quis mostrar-nos o melhor de Shane sem nunca omitir a sua opção (consciente) pela decadência, a sua voz quase imperceptivel torna-se muitas vezes ‘limpa’ e com vida. O brilho que ainda pemanece naquele olhar distante mas presente, a raiva que tem à canção de Natal mais ouvida no mundo, “Fairytale of New York” e ao amor e gratidão que sente por Kirsty MacColl. A vontade de querer fazer ainda mais. MacGowan é e será recordado acima de tudo como um escritor de canções, um poeta irlandês na linha de James Joyce ou de James Clarence Mangan (Séc. XIX), dois escritores que admira bastante pela irreverência e rebeldia. Crock of Gold é um filme de emoções, as lágrimas caem-nos com a mesma facilidade, sejam das gargalhadas das estórias hilariantes das alucinações de Shane, ou do retrato realístico do sofrimento histórico do povo irlandês e dos MackGowan. Como disse Johnny Deep numa conferência de imprensa, “Este é um filme de acção!”.