Durante a vida, aquilo que nos vai moldando e dando algum conhecimento são as várias experiências que vamos vivendo. Entre elas, boas e/ou más, o grau de intensidade diversifica, tal como aquilo que absorvemos delas. No entanto, existem quatro fases que estarão sempre presentes em nós e no mundo que nos rodeia! São elas a vida, o amor, a perda e a morte. Tudo o que tem um princípio tem um fim, até mesmo a nossa existência, seja ela física, imaginária, identitária e, até, emocional.
O novo disco de Tio Rex, é talvez, o trabalho mais denso e completo que ouvi dele até agora e foca-se no ciclo que acompanha a vida e a nós. Chama-se Life, Love, Loss and Death e saiu no passado dia 22 de Outubro pelo selo da Cidade Fantasma.
Cheios de curiosidade em perceber diversas coisas, estivémos à conversa com Miguel Reis, cantautor setubalense por detrás de Tio Rex para falar desta delícia que nos trouxe.
Música em DX (MDX) – Gostava que me falasses um pouco da construção deste disco, a composição, o porquê ter estes 12 convidados…
Miguel – Este disco já está pensado desde 2016, honestamente. As primeiras canções já existem escritas à guitarra e à voz desde essa altura. No entanto, comecei a ver que isto ia ser, se calhar, o meu primeiro álbum com mais de 10 canções, com mais canções e menos poesia musicada, um disco que se ouve mais facilmente. Então, quando comecei a perceber isso percebi que se calhar seria mais exigente do que ser só eu e mais 2 ou 3 ou 4 pessoas e percebi que para fazer este disco ia precisar de tempo, de pessoas e de muita coisa. Por isso foi um disco que foi sempre ficando e como não podia ficar parado, já tinha algumas canções para o Tragedies e lancei o 5 Tragedies. Pouco antes da pandemia entrámos em estúdio finalmente, já tinha as canções desenhadas na cabeça e começámos a gravar demos de guitarra e voz, a minha parte! Normalmente, quando já tenho tudo da minha parte (guitarras, banjo e as vozes) trago para casa e depois faço o exercício meio esotérico de tentar perceber o que é que quero ouvir em cada canção, o que é que a canção me pede, os elementos, as texturas e, no fundo, antes das pessoas saberem que iam tocar no disco já eu sabia que elas iam tocar no disco. Já sabia que aquela canção precisava de um trompete, a outra de um acordeão e, felizmente, tenho a sorte de ter amigos que tocam estas coisas todas! Nunca trabalhei na óptica de contratar um músico para fazer alguma coisa. Tenho a sorte de conhecer pessoas que tocam com bandas e tocam com estes instrumentos todos e este disco, sendo um bocado a coisa mais ambiciosa e maior, quando dei por mim eram 11, 12 pessoas e foi um grande disparate, imensas pessoas!! Depois veio a pandemia e gravar esta malta toda foi um grande desafio… porque foi, no fundo, cada um à vez, nunca tocamos 2 pessoas ao mesmo tempo foi cada um a sua parte e, nesse aspecto, até acho que conseguimos uma coisa bastante hercúlea até porque nunca houve contactos entre nenhum dos músicos e as coisas até soam coesas e as canções soam bem.
MDX – Era uma pergunta que tinha para te fazer, o que é que a pandemia implicou neste teu disco a nível de produção, lançamento, etc.
Miguel – Basicamente nós em Setembro de 2019 começámos a gravar demos. Em Outubro e Novembro gravámos baterias na Casa da Cultura e os baixos no estúdio do Sérgio, que é na casa dele. Só que com a pandemia, com família e afins não podiamos estar a meter pessoas na casa dele e então arranjámos um estúdio alternativo: um espaço pequenino onde pudéssemos fazer as sessões individuais de cada músico. No entanto, tínhamos de estar fechados em casa, ninguém podia sair e só quando as coisas foram abrindo, mais perto do verão do ano passado, é que voltamos a gravar instrumentos e a coordenação foi não só com base na disponibilidade mas também naquilo que o Governo nos permitia, com as aberturas que iam surgindo. Foi um processo moroso, acima de tudo, mas ao mesmo tempo também nos permitiu ter muito espaço para ouvir as canções, para descansarem, houve uma altura que pensávamos que estavam acabadas e depois voltámos lá outra vez e isso fez com que o disco tivesse um cuidado e um tempo de maturação muito maior do que todos os outros, por isso, por um lado, não sei até se não ajudou.
MDX – Tinhas pensado lançar quando?
Miguel – Na primeira metade de 2020 porque começámos em Setembro de 2019 e em 2 ou 3 meses o disco estaria gravado, depois eram mais 2 ou 3 meses para preparar a promoção e sairia em Abril de 2020.
MDX – Nota-se que é, talvez, o teu disco mais consistente, mais maduro a nível de composições, densidade, quantidade de instrumentos. Sentes isso também?
Miguel – O objectivo é o disco seguinte ser sempre melhor que o anterior. Mas também acredito que sim, foi o disco onde tive mais cuidado não só em relação à produção e ter a coisa cheia e com força: as texturas, os instrumentos e a malta toda fazer as canções crescerem para além daquilo que é o folk minimalista do gajo com a guitarra ou com o banjo; mas, ao mesmo tempo, foi um disco que foi escrito com muita consciência, ou se calhar o disco que foi escrito com mais consciência do ouvinte. Tanto que eu começo o disco a falar para a pessoa que meteu o CD a rodar, a dar as boas vindas e depois acabo da maneira que acabo e isso fez com que as canções não fossem tão fechadas dentro de mim, ou só de mim, foi um disco feito com a consciência de que ia ser ouvido e com o objectivo de que fosse partilhado. Que os sentimentos, essas ideias e os temas que eu abordo no disco fossem partilhados com o ouvinte, conscientemente. Então, quando isto começou a acontecer as canções também foram escritas e compostas com a consciência de que isto também é para alguém, não pode ser só para mim e eu acho que isso ajudou a que o disco também tenha ficado com esta vertente mais acessível. São mais canções e menos poesia musicada.
MDX – Sim, tens muitos singles neste disco.
Miguel – Esse foi o maior desafio, foi decidir o que ia ser single ou não no meio disto tudo. A dada altura já achávamos que tudo podia ser single.
MDX – Na música “No Hardship Is a Brick Wall” é onde se nota, talvez, uma parecença maior com alguém que eu identifiquei logo com o Johnny Cash, mas o que eu acho interessante neste disco é que, não fugindo à tua essência, tens aqui uma mistura de estilos e texturas que se conseguem identificar. Isso foi propositado, como tinhas dito que tinhas feito a pensar no ouvinte? Consegues ver o disco assim?
Miguel – Honestamente, apesar do título ser só o título, eu acho que é a estrutura do disco e o disco tem uma cronologia que está escondida nessas quatro palavras. Então eu tento sempre fazer este exercício: se eu escrever uma canção sobre uma coisa pesada, não pode ser só a letra que é pesada, tem de ser a própria música que é pesada. Se eu escrever uma canção mais leve, esperançosa, como é o caso desta que é quase uma traveling song e quando me surgiu a ideia de associar esta canção à parte do life, sentimos que havia a necessidade de a colocar num universo mais leve que te fizesse ir de encontro aquilo que é o conteúdo das letras e a mensagem da canção. Isso aconteceu cronologicamente ao longo do disco, na parte da life tens canções mais abertas, mais bem dispostas, depois no amor estás um bocadinho mais delicado, depois vem a parte da loss que tem as músicas que eu considero mais pesadas do disco e depois a parte death, mais negra. Tentámos sempre que as canções espelhassem os conceitos e as ideias por detrás delas, então foi altamente consciente a viagem acompanhar, não só o conteúdo, mas as texturas acompanharem a história.
MDX – Queria saber o objectivo do uso daqueles elementos sonoros mais externos que tens nas músicas: água, vento, tosse, etc. Dão aquela componente mais pessoal e de ligação com o ouvinte. Era aproximar-te ainda mais, colocar o ouvinte no sítio onde o querias colocar?
Miguel – A bem dizer acho que sim. O que tentámos fazer com a água ou com os grilos foi mesmo que as pessoas sentissem que nós estávamos a tocar no meio da floresta e a ideia com isso é exactamente essa! A primeira coisa que a pessoa ouve da canção põe-a logo com os pés no chão num sítio em particular. Eu gosto muito de discos de estúdio mas tento fugir só às linhas directas dos instrumentos no estúdio e já pomos sonoplastia nos nossos discos há algum tempo e tentamos que isso seja o primeiro contacto quando abre uma canção: que seja humano! Nos discos eu gosto que a sonoplastia ponha as pessoas em sítios e nos ponha a nós enquanto músicos e transmissores da mensagem com os pés no chão, que seja humano, acima de tudo, e acho que isso ajuda as pessoas a compreender melhor e levá-las ao conceito sem ainda terem ouvido nada logo ao início e isso acontece, sim, com esses elementos todos.
MDX – A certa altura aparece aqui uma Cidade Fantasma…
Miguel – No fundo é a nossa vontade de controlarmos um bocadinho mais a distribuição e a edição da nossa música e, ao mesmo tempo, a eventual possibilidade que está em cima da mesa de abrir uma editora. Começar a ter controlo sobre as nossas coisas pressupõe mais trabalho, mais tempo, mais emails e mais escritório, mas ao mesmo tempo a ideia seria sempre permitir a algumas pessoas à minha volta poderem editar também discos e isto vai acontecer. No entanto, as coisas têm de ir devagarinho uma vez que eu sou muito pragmático! Quando decidi abrir a editora, o teste seria este disco, ou seja, isto foi pensado para ver como é que as coisas correm, se tudo estiver mais ou menos controlado e se conseguirmos fazer isto então vou começar a abrir a Cidade Fantasma a algumas pessoas.
MDX – Aí de Setúbal, imagino.
Miguel – Inicialmente sim mas ainda não está nada certo, tenho muitos amigos de fora de Setúbal também e essa possibilidade não está fechada. Só que preciso de tempo para perceber até onde é que isto pode ir com este disco para depois saber o que posso fazer por outras pessoas, por pessoas de quem eu gosto e que fazem música boa.
MDX – Vais fechar a estilos ou como vais fazer isso?
Miguel – Não diria que vou fechar a estilos, até porque o próprio conceito da Cidade Fantasma é um bocado abrangente, não é só um gajo e uma guitarra e só folk! A Cidade Fantasma pode ser electrónica minimalista, pode ser esoterismo, psicadelismo, não sei. Não quero só cantautores, quero dar resposta a necessidades que podem surgir de pessoas que têm texturas e mensagens para passar que eu ache que são válidas e vamos tentar ajudá-las. Acima de tudo é isso, se tiver que sair um disco de metalcore na Cidade Fantasma sai! São coisas que eu gosto também, eu estou um bocadinho preso entre dois pólos opostos: a coisa minimalista e calminha de Leonard Cohen, Johnny Cash, etc, a cena dos cantautores e o hardcore e o metalcore e é um bocado bipolar mas, neste espectro todo, tudo pode acontecer e é isso que eu gosto. Então a Cidade Fantasma vai passar por aí à partida. Tem é que haver projectos para isso claro, não vou forçar nada.
MDX – Em jeito de curiosidade, nas quatro fases do disco: vida, amor, perda e morte, a que me intriga mais é a morte porque, apesar de serem as quatro algo com que lidemos diariamente, a morte é a pior, está interligada à perda e é a que pode trazer danos mais graves e sinto que isso foi vincado, a questão da morte, talvez porque a morte implica perda e tu tens as duas. Queria saber se te aconteceu alguma coisa, se perdeste alguém recentemente…
Miguel – Acho que já perdemos todos várias pessoas, infelizmente. Acho que as últimas quatro canções, aquelas que definem a perda e a morte estão muito em conjunto. A que se demarca mais é mesmo a última que é, no fundo, a representação de estares mesmo ao lado da cama de alguém que está a morrer aos poucos. O meu tio faleceu por causa do Covid este ano, apesar de a canção já estar escrita há mais tempo, foi uma canção que foi de encontro a isso que aconteceu e ao facto de ligarmos a televisão e vermos aquelas pessoas todas entubadas. Eu já tinha a canção imaginada para representar esse momento de tu estares ao lado de alguém que não responde, não diz nada, não sabes o que a pessoa está a passar lá dentro e estás só tu ou seja a morte é da pessoa mas a experiência é de quem está cá deste lado, e foi isso que tentei representar nesta canção. Contudo, eu também acho que a morte ou o fim podem representar não só a morte física, e isso eu falo na canção anterior, mas também a morte da identidade. Está ligada com a maneira como nós nos reinventamos quando nos perdemos e como é que a catarse acaba por matar uma pessoa que nós fomos e faz nascer outra. Ou seja, a morte pode ser só um fim físico mas também pode ser uma morte identitária. Eu interesso-me muito pela psicologia do Yung, a cena da individualidade e a maneira como assumimos a nossa identidade ao longo da vida e a destruímos e voltamos a criar novas e, aqui, o conceito de morte também passa por aí, não é só a parte física.
MDX – Em relação à capa, fala-me um bocadinho dela.
Miguel – Quando falei com o Ricardo Campos, o artista plástico, um amigo aqui de Setúbal que é pintor, eu pedi-lhe 4 imagens que representassem os 4 temas e essa é a da vida por isso é que é a primeira. A preta é a morte. Se tu abrires o disco as do meio são a representação do amor e a outra da perda.
MDX – Mas porquê a vida em primeiro, porque é a primeira fase ou por outro motivo?
Miguel – Eu acho que, no fundo, sendo um disco à base de um ciclo que partilhamos todos, que é transversal a toda a gente, a minha ideia foi nós partilharmos todos os nossos ciclos! Eu abrir a porta e ao partilhar o meu, fazer com que quem ouça partilhe o seu com outra pessoa qualquer e isso só é possível fazer na vida. Então acho que o segredo está em estar vivo, saber estar vivo, aproveitar a vida e fazer valer o pouco tempo que temos cá e, no fundo, por isso é que a vida está em primeiro lugar. Apesar de eu achar que essa imagem pode representar vários dos temas porque a flor também está seca, mas tem a semente.
MDX – Em relação ao concerto, como é ter uma apresentação num espaço como o Forúm Luísa Todi, em casa, com esses convidados todos?
Miguel – Basicamente isto foi em resposta a estarmos em casa fechados quase 2 anos. Eu não dou concertos desde Novembro de 2019, então foi uma ideia megalómana de que uma vez que estivemos tanto tempo fechados, se é para voltar que seja em grande! Então pensei em fazer isto com toda a gente que tocou no disco e pronto, é isso! Lá caíram 1 ou 2 pessoas que já tinham concertos e não podiam, mas mesmo assim estamos 11 dos 13. O Município de Setúbal tem estado cada vez mais, nos últimos 4 ou 5 anos, atento à malta da cidade e já nos tinham permitido tocar na Feira de S. Tiago em 2019, que é um evento muito grande, e quando essa porta se abriu pensei tentar fazer uma apresentação à séria, com um disco à séria, com muita gente e isto tinha de ser no Fórum e eles aceitaram e estão a ajudar-nos a montar isto para que seja mesmo um regresso especial. Para além disso, é uma data que não se vai repetir, eu não consigo andar na estrada com 11 músicos e 6 técnicos para todo o lado. Vamos filmar o concerto e fotografar, vamos ter cenografia também, o Ricardo, que fez a capa, está a desenhar a cenografia do concerto. A produção está a ser stressante e exigente mas a ideia foi mesmo voltar em grande e ser um bocado a porta de entrada para novos concertos, vamos ver como isto vai correr daqui para a frente.
MDX – E já tens mais datas, já tens alguma expectativa de apresentação em mais locais?
Miguel – Tenho uma para Dezembro no Barreiro e tenho algumas coisas alinhavadas para o início do ano, mas tem de ser um passo de cada vez. A minha prioridade agora é o concerto e a promoção do disco, obviamente, tem de ser assim se não dou em maluco!
MDX – Queres dizer alguma coisa àquelas pessoas que estão indecisas se vão ao concerto?
Miguel – Por um lado já disse que vai haver um cenário diferente e com a arte do Ricardo. Logo aí, o facto de teres um palco desenhado por ele já é um chamariz e depois, o facto de ter tanta gente em palco, que nunca aconteceu e, principalmente, ser uma oportunidade única! A ideia também é dar uma boa razão às pessoas para sair de casa, não ser só mais um concerto! Portanto vai ser especial para nós e para quem for!
O concerto de apresentação de Life, Love, Loss and Death é já no próximo Sábado, dia 20 de Novembro, no Fórum Luísa Todi, em Setúbal. Mais info aqui.