Ainda que estes anos que nos têm fugido entre os dedos nos tenham trazido esferas estranhas de sabor amargo, a criação tem sido a bengala onde agarramos e nos apoiamos quase de olhos fechados, para não absorvermos nada mais. 2021 trouxe a união de dois projectos e, por consequência, a criação de um disco que poucos deixou indiferentes.
Falo de O Místico Orfeão Sónico de Um Corpo Estranho e Saturnia e de ter tido a possibilidade de o saborear ao vivo no Fórum Municipal Luísa Todi no passado dia 14 de Janeiro.
Pouco passava das 21h quando subiram ao palco os impulsionadores da viagem que iríamos fazer. Tal como no disco, o início da mesma começa de forma turbulenta e estridente. Entramos num Caleidoscópio e mergulhamos numa imensidão de cores, perdemo-nos nas encruzilhadas que as cordas criam e nos deixamos cair em transe. Quando acordamos dele vemo-nos dentro da “Velha Carruagem” que nos leva a lugar nenhum onde somos esperados no meio de descobertas e sentimentos.
A intensidade e sensibilidade do cruzamento dos vários tipos de cordas faz-nos começar a observar uma espécie de miragem que nos aparece em forma ondulante coberta de distorção e calor. A sitar dá-nos a mão e ajuda-nos a ter a percepção de que o caminho é cada vez mais longo. O ritmo que tanto acelera o coração como o aperta revela-nos que o que queremos está “Para Lá do Fim do Mundo” mas a ansiedade transforma-se em levitação com o solo de Pedro Franco e o rendilhado brilhante da sitar de Luís. É nesta levitação que nos mantemos na música seguinte entre planícies e dunas num deserto mental gerado pelo processo da eterna descoberta do EU. Complicando sempre o simples, como bem a natureza humana ordena. A “Ermita” aparece-nos com Pedro no Banjo, gongo e distorção. Há uma sensação de tranquilidade e alcançamos um frame de lucidez e rapidamente voltamos a mergulhar, de modo lento, suave e intenso no transe profundo e algo sôfrego e inquietante.
Pelo deserto fora, voltamos a encontrar o caleidoscópio que nos mostra que o que procurámos arduamente está dentro de nós.
“Sete de Bastões” faz-nos despertar envoltos em puro rock’n’roll e calor.
A viagem, jornada completa pelo disco, termina e dá lugar a um encore com a música “Pulso” de Um Corpo Estranho e a “Keep It Long” de Saturnia encerrando de modo resplandecente a noite.
A oscilação entre vozes em coro ou sozinhas com a mistura de estilos de guitarra, distorções, pedais, sitar, o surpreendente theremin e a força pulsante da bateria foram a serpente que nos concedeu o seu dorso para fazermos o caminho desta viagem que todos devemos fazer.