A privação é algo que, para além da devastação emocional que nos pode deixar, nos leva a sentir duas coisas quando a superamos: a primeira é uma ânsia gigante de viver e a segunda é o receio de voltar a ser privados, o que faz com que vivamos tudo de modo, ainda mais, intenso!
O regresso a Paredes de Coura foi um acordar de um pesadelo. Foi um esquecimento global dos dois últimos anos e um apagão da palavra Covid19.
O regresso a Paredes de Coura, trouxe a oficialização de que sobrevivemos, renascemos e afirmamos que é bom viver!
Como já é tradição, não há festival sem chuva, mas desta vez veio tão forte que não permitiu a realização do último dia de Sobe à vila e trouxe-nos o dia dedicado às bandas nacionais bastante molhado.
Não foi isso que nos impediu de assistir ao desfile de hits nacionais e, quando conseguimos sair de casa, começámos pelo concerto de Club Makumba. O quarteto trouxe-nos sons fortes e quentes numa espécie de dança para parar a chuva que acalmou durante umas horas. Concerto bem energizante e envolvente com um ritmo certeiro e bastante apetecível.
De seguida o encanto sempre emocionante e belo de Noiserv e a sua mestria de multi instrumentista e excelente compositor. Com um público que lhe entregou o coração, fez um alinhamento entre o seu último trabalho e êxitos que o acompanham há uma década e que o público entoou numa só voz.
Um dos regressos mais aguardados do cartaz e deste ano veio de seguida com o concerto de Pluto. “A Vida dos Outros” foi o mote para este rasgo de poesia deslumbrante que se faz acompanhar de um rock sujo, puro e simples. Não é preciso muito para Manel ter o público a seus pés, muito menos com Pluto, o seu projeto mais rock e, creio, mais saudoso. A verdade é que o público sabia todas as letras e, por momentos, foi como se tivéssemos voltado quase 20 anos atrás sem nada ter mudado. Nem eles nem nós!
O momento seguinte fez-se acompanhar dos sintetizadores dos bracarenses Paraguaii e nada melhor que a “All My Feelings Fall In Love” para se entregarem a um público cheio de amor para dar e receber. De olhos fechados dançamos em uníssono, de modo sensual e suave de encontro aos tons quentes que nos tocavam ao de leve e contrastavam com o cinzento ao nosso redor. O trio soube guiar-nos pela nossa mente e entregou-se a nós tanto quanto nós a eles.
Em modo de furacão e como que a trazer-nos a terra, os The Twist Connection carregadinhos de rock’n’roll no seu estado mais puro. Com a genuinidade que tão bem os caracteriza, o trio de Coimbra deu-nos um banho de rock com o roll e trouxe-nos aquele calor reconfortante que só este estilo musical sabe dar. Com alguns problemas de som, não se deixaram ficar e conquistaram todos os que ali estavam, espalhados pela colina a abanar a anca e a fazer twist de capas ao vento!
Da explosão passamos para a calmaria e suavidade dos You Can’t Win Charlie Brown que nos trouxe a indie pop romântica numa viagem flutuante e espacial onde levitar era inevitável e abraçarmo-nos a nós próprios também.
O rock cru dos Linda Martini ou Luísa Martina (para alguns) veio de rojo e sem romantismos. Trouxe a urgência interventiva na voz e juventude sónica nos dedos. Filho da Mãe que agora os acompanha na guitarra, estava a disfrutar mais que ninguém do momento e isso notou-se nas cordas. Houve circle pit (que depois percebemos ser uma constante em todo o festival) e uma chapada de realidade em tom de nota musical. A energia intrínseca que carregam foi-nos oferecida e houve uma espécie de comunhão entre todos. A mediática “Cem Metros Sereia” terminava o concerto com um público aos berros e a desejar ter mais cem metros de tudo!
De seguida um momento extremamente poético e dotado de uma beleza pura que, apesar de fria, serviu para nos unir numa só alma. Mas Adolfo e os Mão Morta têm esse poder. Aquele poder visceral de entrar em nós e fazer de nós marionetas da sua voz. “No Fim Era o Frio” foi a aposta deste concerto e num acto quase espacial, especial e denso, envolveu-nos nesta teia de realidade dura que, naquele momento, nos pareceu tão bela e cristalina. Adolfo estava liberto e todo ele transpirava energia em forma de poesia. Foi um dos momentos mais belos do festival onde a voz encorpada e densa de Adolfo quase se desfez com a harmonia melancólica da sua aura e dos instrumentos que o acompanham.
Mais um momento de poesia, mas desta vez sonhadora e mais alegre viria com Bruno Pernadas e a sua banda. Ao todo sete pessoas em palco e um encantamento que só um compositor deste calibre sabe trazer. A elegância suave das suas composições levam-nos a viajar por entre atmosferas primaveris cobertas de cor e camadas sonoras quentes. Os sopros (saxofone e trompete) são como afrodisíacos e entram em nós ao de leve, por cada poro da nossa pele. Ouvir e sentir Bruno Pernadas ao vivo é como estar numa banda sonora de um filme que realizamos sobre os momentos mais felizes da nossa vida!
O sonho maior ainda estava para vir e a harmonia geral também. Normalmente o melhor fica para o fim e, apesar de muitas vezes não acontecer em Coura, neste dia o breu deu lugar a uma luz ofuscante e cintilante que nos guiou a um sorriso colectivo e uma partilha de felicidade geral. Luís Clara Gomes pisava pela primeira vez o palco principal do Festival e não escondeu a sua alegria nem por um segundo. Aquela que sentimos com ele no corpo e na alma. “Running in The Dark” abre as hostes como que a sintetizar os dois últimos anos que vivemos e que rapidamente esquecemos desde que chegámos a esta vila encantada. “Dream On” deu as mãos à fuga e abraçou o sonho de sermos felizes, tanto quanto poderíamos ser ali, naquele momento a dançar despidos de tudo, já sem capas e sem maldições. Luís queria falar mas também queria tocar e tocar-nos com a sua música por isso foi um jorro de músicas e emoções numa dança que não podia parar. Com Afonso Cabral, Sara Tavares em vídeo e Selma Uamusse houve quase que um lançamento do seu último disco e ainda tempo para a celebração da vida, de coura e de estarmos todos juntos! Momento em que chamou ao palco alguns dos músicos que tocaram também e puderam todos cantar e dançar o hit de Moullinex: “Take My Pain Away”. Em comunhão absoluta entre eles e entre eles e nós e entre nós e os nossos amigos livramo-nos das dores e celebramos o poder da música e este regresso tão forte do Vodafone Paredes de Coura.
No fundo, tivemos um best of das bandas nacionais que, por serem tantas, tinham pouco tempo de concerto o que não deixou de ser interessante e motivante pois deu espaço a todos e todos escolheram um alinhamento cativante e brilhante para poder fazer deste primeiro dia uma celebração molhada da música portuguesa e do nosso regresso a este anfiteatro mágico, onde o mundo deixa de existir e somos todos um só.