Onde estiveram no último sábado à noite deste inverno?
Os londrinos Shame não esgotaram o LAV, mas quem não faltou encheu a casa de uma maneira muito mais eficaz e feliz. Posso dizer que tinha dúvidas quanto ao concerto de Shame e não era quanto à banda ou ao seu nível de entrega. A minha dúvida foi sempre se o público estava à altura, se iria corresponder na mesma torrente de energia que a banda destila em palco, pelo menos em quase todas as actuações cujos vídeos tenho visto desde 2018.
Mas vamos ao início protagonizado pelo duo They Hate Change. A escolha dos americanos para abrir a noite dificilmente poderia ter sido mais feliz porque entrar numa sala, a um terço da sua capacidade e sentir de imediato a boa energia entre a banda e o público, logo à primeira música, de caras mesmo, é indescritível e não acontece meramente por acaso. E isso até pode parecer simples, mas não é, porque o duo americano They Hate Change, está num espectro musical radicalmente diferente dos Shame, e quando se aposta assim tem de se saber apostar portanto ou os They Hate Change são mesmo bons, ou as coisas correm menos bem (eu não gosto de meter as coisas em caixinhas de gêneros, mas sim, são coisas completamente diferentes)… Excepto talvez na energia, na juventude e nos ideais.
No que toca ao índice de felicidade, ver sorrisos e gente a dançar assim, para mim, são imediatamente pontos a favor, imensos. Mas quanto a isso o melhor que têm a fazer é ouvir este duo de Hip Hop, norte americanos, oriundos de Tampa, Dre e Vonne, que já contam em cerca de seis anos de actividade com três discos, e mais de duas mãos cheias de colaborações e EP’s, sendo “Finally, New” de 2022, o mais recente e o registo por onde passaram mais na noite de sábado. Bem humorados, cheios de energia e boa disposição e completamente irrepreensíveis em palco, só não trouxeram merchandising, se tivessem trazido a minha aposta tinha sido em Finally, New.
Depois do eficaz aquecimento proporcionado pela actuação dos They Hate Change, não demorou muito até que se ouvissem as guitarras dos Shame a ecoar pela sala, agora já mais cheia e com um crescente burburinho na frente de palco. Perto das 22 horas, ou seja completamente dentro do expectável e sem qualquer atraso quanto ao horário estipulado, entram em palco os cinco elementos dos Shame, debaixo de alguns gritos mais ansiosos, que já momentos antes se faziam adivinhar pelo tipo de burburinho juvenil que se sentia frente ao palco.
Alibis e Fingers of Steel, ambos de Food for Worms, abriram as hostilidades, e logo o público mais jovem concentrado na frente do palco, corresponde sem hesitar para de seguida se mergulhar em Drunk Tank Pink para rodar Water In The Well. Bem medido o pulso ao público que se mostra vivinho e de saúde é o momento de o testar. Acho que se não tivesse sido assim estariam em maus lençóis porque ou muito me engano ou a noite anterior foi divertida demais e eles ainda não tinham saído totalmente dela (quem nunca?!). Com este público bastante jovem nas filas da frente, e alguns mais crescidinhos a cantar a plenos a pulmões desde quase a primeira música, é mais do que justo dizer que, quando se ouvem os acordes iniciais de “Concrete” já estávamos quase todos na mesma sintonia apesar de os Shame terem passado ali uma espécie de “problemas técnicos”, durante estas primeiras músicas, provavelmente ainda resquícios da noite anterior.
Para mim apenas significa que não estavam a fazer playback nem usam auto tune e é mesmo assim que tem de ser porque o que eles tocam tem que causar fricção, tem de ter momentos de desarmonia, e não obriga de todo a uma execução técnica perfeita em palco.
Concrete, orelhudíssima, cantada, esbracejada e gritada em uníssono quase total da frente de palco, “no more questions, no more questions, no more questions”, quase a esgotar a voz de Charlie Steen (lá atras não sei como estava, não estive lá tempo suficiente para tirar notas, mas espero que estivesse tão eletrizante como ali à frente), para quase sem respirar voltarem ao presente com Six Pack. Até agora que há a reter? É que grande parte da audiência sabe as músicas dos três álbuns, e bem. Mais novos, mais crescidos…Os mais novos sabem bem os três álbuns, os mais crescidos ainda não tiveram tempo de digerir “Food For Worms” , mas creio que ficaram mais convencidos depois do concerto do que estavam antes.
Six-Pack, poderosíssimo, apesar de o baixo não ter tido a mesma energia que em estúdio, mostra o porquê de ser o segundo single de Food For Worms. Volta atrás, Tasteless foi o terceiro single da banda, quase um ano antes de sair Songs Of Praise, e nova explosão do público enquanto se grita “That’s racist, That’s racist, How tasteless”.. e com Charlie Steen quase a rebentar as cordas vocais enquanto grita nas nossas caras “Pick me, Pick me, Pick me, Pick me”.
Precisaram de respirar um pouco. Eles e o público talvez também precisasse de respirar um pouco, e por isso serviram-nos Yankees e Burning By Design que têm uma energia diferente das anteriores, ou apenas para nos prepararem para o que se seguia, o mergulho em Born in Lutton que foi porta de entrada para um momento intenso, que aos primeiros acordes de Adderall se tornou mais denso para logo de seguida estabelecer uma ponte intimista com a tímida guitarra do inicio de Orchid, e os seus versos “We were tourists in adolescence, We were lovers in regression” cantados de forma tão sentida como se todos ali sentissem aquela melancolia adolescente naquele exacto momento.
The Fall Of Paul retoma a forma e direcção anterior, levando a um novo pico de energia que culmina em Friction, a ouvir-se “It’s only friction, It’s only friction” a ressoar bem alto para abrir caminho para One Rizla. Snow Day que é bastante diferente da maioria das músicas escolhidas para esta noite, pareceu inicialmente um balde água fria, mas de repente quando olho melhor à minha volta estão todos a cantar mas simplesmente mais baixo, completamente apropriado ao que se segue e que termina a noite: Angie com um maravilhoso final “I’ll hold your face, And we will stay, In your happy place, In your happy place”, que quase nos confirma o que a própria banda disse durante a noite. Querem voltar.
Não basta ter salas esgotadas, ou tocar para dezenas de milhares em festivais se não se dá tudo, seja em que circunstância fôr e estes miúdos dão tudo a um público que se entregou desde o primeiro momento “let me see those beautiful faces” disse, e mais tarde em português, “deixem ver as vossas caras bonitas“, e foram embora mas com a promessa de voltar. É verdade que a sala não estava esgotada nem perto disso mas os Shame comportaram-se como se estivesse do principio ao fim, deixando alguns mais crescidos a queixar-se de não ter acontecido um stage diving e um pit em condições. Perceberam bem…quem se queixou de não haver stage dive foi o pessoal mais crescido. Quem andou no crowd surf também foi o pessoal mais crescido, que já agora que falamos das coisas também foi quem mais instigou o pit…
Para o instantâneo que acho que ninguém tem fica o momento em que alguém com uma frondosa cabeleira negra aos caracóis sobe aos ombros de outro alguém, mesmo na frente de palco, e levanta a t-shirt. Eu e quase toda a gente ali dentro pensámos que era uma rapariga, mas ao olhar para a expressão dos músicos decido olhar novamente e de repente percebo que não. A avaliar pela cara de Charlie Steen e do guitarrista Eddie Green acho que ambos ficaram sem perceber o que se passou ali e riram simplesmente, porque não era bem o que estavam à espera de ver debaixo daquela t-shirt de Ramones, ficando assim mais que provado que são gente com senso de humor.
16 músicas irrepreensíveis e bem escolhidas, mesmo com aquelas dificuldades técnicas iniciais. A mim faltou-me Alphabet e gostava muito de ter ouvido Donk, poderiam perfeitamente ter sido o encore que não existiu.
Mereciam uma sala esgotada, mas apenas se essa sala esgotada tivesse a energia desta gente que lá estava e desculpem qualquer incorreção mas agora estou mais curiosa que nunca com o que vão fazer a seguir. Voltem rápido.
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