Phone free show, é o formato de concerto onde as pessoas ficam impossibilitadas de utilizar os telemóveis durante toda a sua estadia no recinto do espetáculo. Todos os concertos da ‘Rough and Rowdy Ways – World Wide Tour 2021-2024′ estão enquadrados nesta tipologia. Eu ainda não tinha vivenciado esta experiência e devo dizer-vos que, em espetáculos em sala com plateia sentada (e não só), deveria ser mais recorrente (para não radicalizar e dizer mesmo obrigatório!). Ontem à noite em Lisboa, dentro do Sagres Campo Pequeno não houve luzinhas a perturbar, nem mãos a tapar a visão, nem fotos, nem vídeos, nem distrações de notificações de posts ou de stories nas redes sociais. Naquelas duas horas o mundo ficou hermeticamente fechado numa bolsa. Estivemos 120 minutos mergulhados nos magníficos acordes das cordas do folk-blues, numa espécie de proteção sonora face a ritmos um pouco poluentes e agressivos para a saúde auditiva, dada a quadra festiva que estamos a viver.
Tony Garnier (baixo), Donnie Herron (violino), Bob Britt (guitarra), Doug Lancio (guitarra) e Charley Drayton (bateria) e Bob Dylan, igual a si próprio. Esta é uma tour bem diferente da última que nos trouxe naquela sala grande e fria lá para o pé do Tejo. A última vez que vimos o Dylan em Lisboa, foi em em 2018 no Altice Arena (Bob Dylan and His Band) e já tinha a bonita idade de 77 anos. Nessa altura pensámos que seria a última vez que estaria por terras europeias, enganámo-nos! Em junho de 2020 Bob Dylan marcou os seus 60 anos de carreira com o fabuloso álbum que dá nome a esta tour, Rough and Rowdy Ways. Duas mãos cheias de temas intimistas, na forma sombria e sincera como conta as estórias de uma vida orgulhosamente cheia (82 anos acabadinhos de completar!), mas também na simplicidade rebuscada dos ritmos graves e compassados das guitarras marcadamente blues.
O dia ainda estava para ficar lá fora pelo menos mais uma hora, mas à hora marcada (20h00) o sexteto antecipou uma noite que viria a ser intensamente quente e escura. Passaram 5 anos, e o arrastar vocal de Dylan que nos ressoa a alma e aquece o coração, vibrou ainda mais. Um contador de histórias nato, com o entoar das frases com subidas e descidas, ao ritmo da intensidade da mensagem e das catarses que nos quer passar (“Got a tell-tale a heart like Mr. Poe”). Uma escolha cuidada do alinhamento onde último álbum foi tocado praticamente na integra, faltou apenas um tema, talvez porque tem a duração de 16 minutos. Numa composição de partitura perfeita, que nos convidou para figurarmos num cenário americano num pequeno palco de uma pequena sala, numa pequena cidade de New Orleães ou do Minnesota. Sem nenhum dos grandes hits “Hurricane“ ou “Knockin’on heavens door”, nada. Deambulou pelo inicio de 1970, com “Watching the River Flow” (no arranque) e “When I Paint My Masterpiece” (mais para o meio), mas não foi o passado que o gigante Bob Dylan nos quis deixar em 2023 mas sim o presente. Ontem deixou-nos um reinventar de si própro, da sua música, da sua poesia, da beleza profunda de quem sentiu a vida por inteiro e deixa um legado imenso para a eternidade.
Um contrabaixo que se manteve por detrás do piano que Bob Dylan não largou uma única vez. Umas subidas e descidas serenas de um esticar de pernas, entre o banco e o micro que estava um pouco elevado. A guitarra desta vez não passou pelas suas mãos, mas não lhe sentimos a falta. Todas elas, e foram muitas entre eléctricas e acústicas, estiveram muito bem entregues nas mãos dos guitarristas enormes que o acompanham e lhe fazem justiça.
Este foi um concerto com uma textura especial. Não somente pela escolha meticulosa de todas as composições de Dylan, mas pelo ambiente que conseguiram criar com um cenário minimalista e intimista. As cortinas densas, caidas sob a linha de luz que desenhava em formato de caixa próxima do solo. A luz ténue e acolhedora, o suficiente para nos manter envoltos em imagens de um oeste americano que gravou estórias de paixões assolapadas e meio desfeitas pelo tempo. “My Own Version of You” é disso um exemplo.
As luzes incidiam sobre aquilo que de facto interessa, os instrumentos. Estes que entravam e saiam entre as músicas (violino, contrabaixo, guitarras muitas), e a dança poética das letras, não fosse este homem Prémio Nobel da Literatura e, cada vez mais digno desse reconhecimento (perdoem-me os acérrimos críticos a esta escolha de Estocolmo!).
Pouca ou nenhuma interação entre os músicos, mas que pela alta performance não chocou nem nos fez mossa. Três agradecimentos à Dylan e uma frase curta de “espero que estejam bem esta noite”. A voz nasalada, transformou-se numa rouquidão bonita que nos ressoa e estremece-nos no peito. Duas imaculadas horas de cordas afinadas e rebuscadas, de teclas soltas do apromádo piano e da voz, que por ser tão única, hoje ainda está melhor que ontem.
Um espetáculo intimista quase de época, onde Bob Dylan mostrou que está e estará sempre naquele sítio perto dos deuses. Que com 82 anos se reinventa a cada espetáculo que produz, que continua a encantar-nos com a fusão perfeita do blues-rock-folk mergulhado na melhor poesia. Sim, é o Bob Dylan, com todo o respeito!