«A espera finalmente acabou». Foi este um dos primeiríssimos versos de um extenso concerto que pautou o regresso de Rammstein a Portugal ao fim de dez anos. “Rammlied”, tema introdutório, cedo nos recordou que as pessoas ouvem, vêm e são submetidas a um concerto da banda alemã. Seja pela intensidade sonora, pelo fervoroso espetáculo pirotécnico ou pela articulação do vocabulário germânico, não há como passar ao lado.
Já assim tinha sido no outrora Pavilhão Atlântico, poucas semanas antes de se renomear a MEO Arena, na última visita a Lisboa e a Portugal. No Estádio da Luz foi hasteado um dos símbolos da música pesada do virar do milénio, o mais singular de todos e o pioneiro da Neue Deutsche Härte, que fundiu o metal alternativo dos anos 90 com a música eletrónica e industrial alemã. Desde então que os Rammstein competem numa liga só deles: alinham riffs simples e destrutivos, baladas ao piano, sintetizadores roubados às raves techno e chamas ardentes com uma língua nativa que, ao ouvido da maioria não-falante, carrega hostilidade.
Apesar da grande produção de palco, a maior da sua história, o alinhamento em Lisboa e na restante digressão europeia (que foi o mesmo, sem surpresas, pela sincronização e preparação necessária para que tudo funcione na perfeição) não foi em modo best of. “Bestrafe mich”, já depois das faixas vermelhas de “Links 2-3-4”, surgiu no alinhamento como deep cut recuperado de 2001, ano em que havia sido tocada pela última vez antes destas datas. “Giftig”, logo a seguir, foi a primeira visita ao mais recente álbum Zeit, que dividiu o destaque da setlist com o anterior [Rammstein], mas também com os marcantes Sehnsucht e Mutter.
“Mein Herz brennt” foi um dos momentos altos da noite. Um coração que arde e ama o cheiro a benzina, bem presente no Estádio, e tem um gosto especial em queimar coisas: ora um carrinho de bebé a rogar pragas sob a forma de confetti pretos em “Puppe”, cujas imagens nos recordou o trauma parental de Eraserhead de David Lynch; ora um caldeirão contendo o teclista Christian Lorenz, em “Mein Teil”, às mãos dos lança-chamas empunhados pelo vocalista Till Lindemann. Entre essas, o guitarrista Richard Z. Kruspe mostrou a sua versão remisturada de “Deutschland” para a banda a tocar de seguida na sua força bruta. Uma canção antagonista para a Alemanha dos Rammstein, que não só lhes deu a sensibilidade eletrónica dos Kraftwerk e o ruído industrial de Einstürzende Neubauten, como também a simbologia nazi e o otimismo da schlagermusik para contrariar.
É para sequências como “Du hast” e “Sonne” que se paga o preço do bilhete. A primeira, enquanto clássico óbvio do reportório, ouviu-se a plenos pulmões fora do Estádio e teve direito a fogo-de-artifício, a segunda foi a que mais elevou a temperatura graças às múltiplas tochas colocadas em palco e nas torres de amplificação. O encore aconteceu no segundo palco, mais ou menos a meio do relvado, fazendo regressar a dupla de pianistas Abélard, responsáveis pela primeira parte, para a versão Klavier de “Engel” juntamente com os Rammstein. O assobio foi substituído por cânticos e a letra, quem não a soubesse já, foi legendada nos ecrãs. Orquestrou-se a intimidade, mas perdeu-se a força de um dos temas mais especiais no seu formato original ao vivo. Para tentar compensar, a banda surfou em botes de borracha até ao palco principal, distribuindo uns autógrafos pelo caminho e capturando uma bandeira de Portugal, colocada na bateria logo de seguida.
Mais se pode dizer do restante alinhamento, que pode não ter agradado a todos. “Ausländer”, uma das mais potentes faixas da carreira recente do sexteto, pedia da mesma forma uma “Zeig dich”; “Du riechst so gut”, do primordial Herzeleid, pedia “Asche zu Asche” ou “Wollt ihr das Bett in Flammen sehen?” a acompanhar; e “Ohne dich” recordaria ainda melhor Reise, Reise com a inclusão de “Keine Lust”. Faltaram ainda outros clássicos, como as incendiárias “Feuer frei!” e “Benzin”, no entanto compreende-se a exclusão de “Amerika” ou “Pussy”, temas que não envelheceram tão bem num valor crítico-humorístico.
Num segundo encore, “Rammstein” e “Ich will” voltaram a arranhar a voz de milhares de fãs, hipnotizados pela mochila pirotécnica de Till Lindemann que o transformou numa espécie de pavão de chamas. “Adieu” pode não ter apenas servido para a saída de palco – repetindo-se o adeus em vários idiomas no refrão, sendo impossível não vir à memória uma certa canção de José Cid – mas também para o futuro dos Rammstein.
Durante mais de duas horas houve um tema que não parece ter interessado muito a um estádio cheio, mas à saída dos portões a não pode ser mais evitado: Till Lindemann tem sido acusado de conduta sexual imprópria por várias mulheres, tornando-o num símbolo recente do movimento #MeToo e com um esquema que envolve bebidas adulteradas oferecidas a fãs em festas conduzidas pelo próprio. A primeira denúncia foi feita há cerca de um mês por Shelby Lynn, uma fã da Irlanda Norte, que diz ter sido drogada pela equipa de produção do vocalista numa festa antes de um concerto da banda na Lituânia, com o propósito de a levar a ter relações sexuais. A restante banda, que primeiro negou as acusações, avançou depois para uma investigação interna. O baterista Christoph Schneider utilizou as redes sociais para se pronunciar sobre o assunto e referir que o vocalista se distanciou do restante grupo nos últimos anos e criou a sua própria “bolha”, com «as suas próprias gentes, festas e projectos».
A investigação está em curso também no Ministério Público alemão e aguardam-se avanços; na Lituânia o caso já caiu por terra. Só o futuro guarda certezas quanto ao desfecho das acusações e, por tabela, o que será dos Rammstein. Não sabemos se há uma “bolha” por rebentar, mas se esta foi a forma de se despedirem dos fãs, não imaginamos forma mais sumptuosa de o fazer.