Há pouco mais de 30 anos, um grupo de amigos estava na praia fluvial do Tabuão a assistir a uma noite de fados. Em jeito de tentação surge a ideia de fazerem um festival. Nasce, assim, aquele que é o melhor festival de verão de Portugal. Foi a propósito desta celebração que estive à conversa com João Carvalho, uma das cabeças e caras do Festival Paredes de Coura.
Música em DX (MDX) – Consegues dizer-me um dos momentos mais difíceis ou que tenhas considerado mais difícil e um dos melhores momentos, ou mais fácil, ao longo destes 30 anos?
João – O momento mais difícil, garantidamente, foi o de 2004 em que choveu torrencialmente durante todos os dias. Toda a gente sugeria cancelar o festival, desde a equipa de som, à equipa de segurança, à proteção civil, aos engenheiros do palco, e nós teimosamente, dissemos que não. Foi um risco porque na altura um dos palcos foi abaixo, exactamente o palco onde tocavam os LCD Soundsystem e no palco principal também podia haver deslocação de terra. Fomos inconsequentes mas ainda bem que o fomos, porque se fez e correu tudo bem e foi uma edição marcante. Costumo dizer que a história do festival se faz de sucessos e insucessos e esse insucesso trouxe aprendizagem e depois o grande sucesso de 2005. Por exemplo, esta chuva que temos a cair hoje, que seria um drama para qualquer festival, para nós é apenas uma pedra na calçada que desviamos com facilidade e isso foi a experiência que nos trouxe, esses anos bons e esses anos maus, portanto acho que já respondi à tua pergunta, pior momento 2004, pelas circunstâncias que disse, melhor momento 2005 porque estávamos quase a desistir e ganhámos ali uma força e um entusiasmo extra para prosseguir com o festival.
MDX – Não sei se tens esta noção, se não tens espero que possas ter, mas acredito que tenhas: olhando para os festivais generalistas que existem em Portugal, Paredes de Coura apesar de ter também bandas mainstream, continua a ser aquele que não se vende e por isso é que continuas aqui a manter o teu público fiel, pessoas que vêm realmente pela música. Isto é muito importante para um amante de música, que eu acho que és, ter a curadoria e a base deste festival que tem 30 anos e que, na minha opinião e de muita gente, é mesmo o melhor festival generalista de Portugal… Tens essa noção?
João – Pode parecer pretensioso mas eu acho que sim. Acho que é o festival que mais arrisca, é o festival que mais cuida do seu público, que mais cuida do recinto, dos pormenores. É um festival dos amantes da música! Basta veres que qualquer artista que aqui toca, às 18h30 tem casa cheia e isso acontece raramente nos outros festivais. Normalmente há as bandas chamadas de aquecimento e aqui não há ninguém para aquecer! Aqui há bandas para mostrarem o que valem e há público para ouvi-las, portanto permite-me a vaidade mas acho que sim, que é o melhor festival português.
MDX – Falavas na conferência de imprensa do cartaz e quando eu olhei a primeira vez para ele, também tive a sensação de precisar de mais alguma coisa e depois ao analisar banda a banda percebi que não, que estava mesmo bom.
João – Pois, há muita gente que teve essa sensação. Se este cartaz foi desenhado assim desde o início? Não, fui-me adaptando consoante o que oferecia o mercado, consoante as bandas que estavam em digressão e consegui um belíssimo cartaz. Eu acho que este cartaz vai ser marcante em termos de futuro, quando formos recordar esta edição será uma das edições com grandes concertos e vamos ver bandas a saírem daqui e a agigantarem-se. Bandas portuguesas como os Máquina, que deram um concerto brilhante ontem ou artistas como Loyle Carner que se deu muito bem e que não é à partida um artista de Paredes de Coura, ou não era há anos atrás. Hoje programamos de forma descomplexada mas isso também não quer dizer que caiba aqui qualquer artista. É um festival cuja essência é o rock e recordo Julie que foi um concerto maravilhoso, dos melhores! E, portanto, é um festival que recebe aqui desconhecidos e que de repente se iluminam e vão voltar garantidamente a outros festivais em Portugal e a concertos de sala e vão ter casa cheia, não tenho dúvidas nenhumas. É o efeito L’Imperatrice no ano passado que de repente se tornou quase num cabeça de cartaz e chegou aqui praticamente como desconhecida.
MDX – Qual é para ti a maior dificuldade quando organizas um festival desta dimensão, tendo em conta tudo o que estamos a falar?
João – A maior dificuldade é montar um festival longe dos grandes centros, em termos logísticos é tudo mais complicado, tudo muito mais caro. Basta dizer que trabalham aqui 1000 e muitas pessoas e é preciso alojá-las e sem hotéis é complicado. As bandas vão todas para o Porto, precisam de hotéis de boa qualidade, depois a programação também é difícil, porque é um festival que se faz sem nenhum festival vizinho e portanto hoje em dia fazer um festival de forma isolada é muito complicado. Por isso é que eu chamo a este festival o meu pequeno milagre porque fazê-lo no interior, ainda por cima com estas dificuldades, sem ter nenhum festival nem em França nem em Espanha, dificulta muito as coisas. Mas tenho a felicidade deste ser um festival muito querido pelas bandas e pelas pessoas ligadas à música, porque todos os anos com uma banda vem um manager que depois conta a outras bandas e elas manifestam desejo em vir cá, assim como bandas que passaram por cá que, às vezes, abdicam de ir a outros festivais para vir aqui, portanto temos essa sorte.
MDX – Reparei numa coisa estes dias, este cartaz tem imensas mulheres e lembro-me que no ano passado andou aí uma onda de queixas porque não havia quase mulheres no cartaz e pergunto se isso influenciou essa tua escolha de cartaz ou foi mero acaso?
João – Foi mesmo mero acaso, tal como no ano passado foi mero acaso. Embora eu ache que é uma injustiça o que se disse no ano passado mas também não houve nenhum jornalista a falar disso, porque se algum jornalista me ligasse, eu dizia-lhe para ir ver a história de Coura que teve desde sempre mulheres a fechar e mulheres a abrir, sendo um festival que é feito sem pensar na genitália mas sim na qualidade musical. Aliás, eu há 15 anos tive os Scissor Sisters, a banda do movimento gay e alguns jornalistas vieram interrogar: uma banda que é um símbolo gay, em Paredes de Coura? está nos jornais, é uma questão de procurar! Eu já na altura arriscava, como tive Kate Tempest, como tive Lykke Li a fechar, como tive Patti Smith, sempre tive muitas mulheres. Obviamente que tento ter a preocupação de ter mulheres mas não é condição sine qua non quando estou a programar. Este ano, curiosamente, estava a fazer esse exercício e a pensar que temos quase mais mulheres que homens, aliás, acho que todos os artistas que fecham são mulheres, mas é coincidência! Não quer dizer que eu não me preocupe com isso, que preocupo, mas não aceito que me venham dizer que este é um festival de homens. Já agora aproveito para dizer que o que aconteceu no ano passado, foi que depois de dois anos de pandemia, eu no meu altruísmo decidi fazer um dia extra que custou muito dinheiro, porque são equipas técnicas, são recursos humanos, são cachets, sem alterar o preço do bilhete, precisamente para promover a música portuguesa e para ajudar as bandas porque estavam há 2 anos sem tocar e o que eu quis foi ter o máximo de bandas possível com sucesso, isto para que a imprensa não dissesse que o festival começa fraco, começa frouxo, porque o artista é pequeno. Então fui buscar os melhores artistas, na minha opinião, que se enquadravam em Coura, os melhores artistas nacionais, e fiz uma boa selecção e não havia realmente assim muitas mulheres. Há muitas mulheres talentosas a fazer música em Portugal, mas com a dimensão que eu pretendia no ano passado não havia. Este ano já há uma série de bandas, acho que essa polémica, não saindo das redes sociais, foi importante para as pessoas olharem mais para as mulheres.
Parabéns ao João, a todos os seus sócios, equipa e todos os que fazem com que todos os anos tenhamos o melhor festival, sempre. Parabéns Paredes de Coura! No mínimo, que sejam mais 30.
Fotografia (capa) – Hugo Lima | fb.me/hugolimaphotography | hugolima.com