Apesar de o Outono ser aquela estação do ano cada vez mais inexistente, ainda é com ela que relaciono um dos festivais mais mágicos e misteriosos que temos em Portugal. O Misty Fest, não só carrega o misticismo que traz no nome, como nos envolve nele, sempre de uma forma única e especial.
Apesar de alguns anos terem decorrido desde a minha última visita, sempre mantive viva dentro de mim a memória de todos os bons concertos que me tem proporcionado.
Não foi excepção esta edição de 2023 que, não só tinha, uma vez mais, uma escolha requintada, como também ela era difícil.
O ser humano tem com ela uma capacidade sensorial que, apesar de não se saber explicar, está bastante activa em nós. É ela a capacidade de sentir a energia das pessoas. A pessoa de quem vos vou falar tem com ela uma energia e força que nos impacta apenas com a sua presença. Ao encostar os lábios ao microfone e nos brindar com a sua voz, aí, então, deixa-nos rendidos. Nadine Khouri é uma cantautora de sangue quente, daquele que arde tanto que quer sair do corpo. Isso é algo que se sente mal se ouve a sua voz. Acompanhada de uma baterista e um teclista/sintetizadores surge em modo suave e bonito com “Broken Star” do seu primeiro disco The Salted Air onde continuou na música seguinte e depois explorou o seu mais recente trabalho Another Life quase na íntegra, tendo faltado apenas duas músicas. As faixas avançavam sempre em crescendo, começando com atmosferas aveludadas ou ambientais mas terminando sempre em composições complexas na companhia da voz de Nadine. Uma voz imponente, poderosa e dona de uma força que intimida. Arriscaria dizer que Nadine é uma mistura entre uma electrizante e rocker Sharon Van Etten e uma suave e melancólica Emma Ruth Rundle, deixando-nos, acima de tudo, cobertos de uma tranquilidade harmoniosa. Durante quase cerca de 1h de concerto, ofereceu-nos paisagens bordadas a veludo negro com “Visitations” e momentos elegantes, intrigantes, misteriosos e belos com “Box Of Echoes” ou “To Sleep”, passando energia de “Shake It Like a Sharman”. Nadine foi, sem a menor dúvida, uma belíssima surpresa.
Foi precisamente há 10 anos atrás que vi John Grant pela primeira vez, quando o seu grande êxito “GMT” não parava de rodar nas rádios. Confesso que a sua mestria na composição e a sua voz não menos dona de si que a da Nadine sempre me cativaram. A versatilidade que tem dentro de si, digo muitas vezes, faz parte daqueles seres que têm no seu fundo algo de génio. Com Chris Pemberton a acompanhá-lo nas teclas e sintetizadores, John Grant fez do piano o seu maior e melhor companheiro nesta noite. Deu voz às suas dores, às dos seus semelhantes e não esqueceu as ironias da vida. É isso que ele faz, conta histórias duras, de forma poética, através da música, transforma a melodia da vida em intensidade e verdade de uma forma despida e sensível. Começou com uma música do seu mais recente trabalho Boy Of Michigan e não voltou mais a ele. Passou por toda a sua discografia, tendo viajado mais pelo seu primeiro disco Queen Of Denmark. Pelo meio, ainda falou da curiosidade que tem pelos azulejos que as casas portuguesas têm nas paredes da rua. John tem na sua voz um poder de expressão que nos consegue levar onde ele quer e junta a esse poder a beleza do piano, deixando-nos desarmados e rendidos. Em “Marz”, do seu primeiro disco, saiu do piano e veio para diante de nós. Fez a voz ecoar pelas paredes do Grande Auditório como se quisesse que ela nos abanasse e as suas palavras ficassem pregadas à nossa pele.
Houve tempo para um encore com “Zeitgeist” e uma música de amor “Caramel” trazendo uma intensa plenitude de composições e encanto.
Nesta noite, em ambos os concertos, sentimos a beleza e poder das palavras despidas. Aquelas que só precisam quase da voz.
Foi a 14ª edição do Misty Fest e contou com artistas nacionais e internacionais de excelência em 15 salas distribuídas por 9 cidades tendo acolhido 12.000 espectadores. O Outono já não espera por nós, mas vai continuar a esperar por este místico festival. Até 2024!