A capacidade de refletirmos os outros em nós requer sabedoria emocional e acima de tudo, sabedoria Humana. Exatamente o que ´humana’ significa para o comum dos mortais, o de tomarmos a consciência por vezes dolorosa, de que o “outro” está em nós. As avaliações cívicas e morais que fazemos, as opções que tomamos e retomamos, e que dependem do contexto social, profissional ou até afetivo. Cara de Espelho “são acima de tudo percebermos: que cada canção é o reflexo das virtudes ou defeitos, das fraquezas, dos pequenos ou grandes poderes, dos tiques, dos vícios, disto que é ser cidadão ou, no sentido lato, do que é ser humano.”
Um ‘supergrupo’, como tem sido apelidado pela crítica. Mas isto de ser ‘supergrupo’ resulta do complemento de várias variáveis, pois não é somente o fruto da maturidade musical de cada um deles, mas sim da robusta singularidade artística de cada um. É esse o desafio desta banda que, quase me atrevia a dizer, ficará na história da música de intervenção, a par de José Mário Branco e de José Afonso, como de tantos outros que musicaram as feridas latentes, mas também as feridas manifestas da sociedade portuguesa.
Coincidência ou não, foi no primeiro mês das comemorações dos 50 anos da ‘Liberdade’ que ficámos a conhecer este projeto com os acutilantes temas, o “Político antropófago” e o “Corridinho português”. Mais do que a recuperação da música popular portuguesa, o disco homónimo dos Cara de Espelho é uma cartilha poética das ‘feridas’ mal saradas deste nosso povo cada vez menos ‘genuíno’. Quis o destino que o “Fadistão” fosse apresentado primeiramente no Minho (Theatro Circo em Braga a 24 de fevereiro), depois a sul em terras algarvias (Cineteatro Louletano em Loulé a 2 de março) e a 5 de março em Lisboa no Teatro Maria Matos. Mas a procura foi tão grande que tiveram a necessidade de fazer um concerto extra no dia 4 de março, demonstrando que o público de Lisboa estava atento e sedento para os ver em palco. E que sorte tivemos por conseguirmos assistir ao primeiro dos dois concertos!
Pouco passava da hora marcada (21h), quando as luzes se apagaram e os fotógrafos correram agachados para a frente de palco. Ainda com as luzes baixas, os músicos entraram discreta e individualmente colocando-se no conforto do seu espaço, permanecendo assim numa harmonia de egos até ao final da atuação. Inevitavelmente que Maria Antónia Mendes (Mitó) dona de uma voz quente e segura, conseguiu fixar os nossos olhares na sua expressiva “necessidade de cuspir as palavras nas canções”.
Um palco bem arrumado, com a distribuição exata dos 7 e dos seus inúmeros instrumentos de corda, de sopro e percussão, não fosse Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa) o artista e o construtor de muitos deles (sanfonas e flautins). O espaço de Sérgio Nascimento (Humanos e Deolinda) habitualmente preenchido pela bateria, destacou-se esta noite por uma extensão de um bombo que foi determinante para marcar o compasso das estrofes assertivas e incisivas. Canções com uma métrica rítmica singular e, segundo os próprios, são também um “desmontar de mitos e fantasias”. Foi ao quinto tema, e depois de “Fadistão”, que Mitó se dirigiu ao público com um “Boa noite Lisboa!”, dizendo que “gostam muito do público português porque é muito genuíno”, fazendo a ligação para “Genuinamente”. Iniciou assim as apresentações dos músicos, que por serem muitos, foram sendo distribuídas ao longo do concerto. Começando por Nuno Prata (Ornatos Violeta) no baixo e na voz, e Sérgio Nascimento na bateria “e o responsável pela criação deste grupo”. Esta ‘confidência’ levou o público a manifestar-se efusivamente, como forma de agradecimento pelo maravilhoso resultado desta ‘responsabilidade’, que mais não foi que a junção destes excelentes músicos.
Seguiu-se o tema alusivo à tão afamada ‘cunha’, que passivamente vamos vendo com frequência “nos ministérios” deste país. Destaque para os instrumentos de sopro que deram um ritmo mais gingão a este tema, “D de Denúncia”. “Roda de Crédito”, música nova que não está no álbum mas que entrou no alinhamento. Racismo e xenofobia que baste, o “Dr. Coisinho” que coisique aqui o dedo! E foi a vez de apresentar o Gonçalo Marques (flautins) e o “mítico” Carlos Guerreiro. “Já vou”, mais uma música nova que desconstrói a futilidade em que muitos de nós vive “(…) a vida chamou e eu disse já vou (…) e agora o mundo acabou.” O “Político Antropófago” é talvez a música mais rodada na rádio e é um dos seus dois singles de lançamento juntamente com o “Corridinho português” tocado logo no início da noite. Os acordes da guitarra são, nesta canção, mais evidenciados e a voz da Mitó mais projetada quando a eleva no refrão “(…) Maria, maria, já se comia qualquer coisinha.” O grito no final arrastou-se até à música seguinte, fazendo a ligação com o tema “O que esta gente quer?”, dotada de uma sonoridade mais pop rock. Mitó fez mais uma intervenção, dedicando “Livres criaturas” ás pessoas que lutaram por uma sociedade mais justa, e não só para alguns. Deu o mote para as últimas apresentações da noite, desta feita o guitarrista José Luis Martins e o Pedro da Silva Martins (Deolinda), guitarrista e autor de todas as músicas de Cara de Espelho, e que “toca afinado” (risos), “Somos os Cara de Espelho“, finalizou enquanto dançava ao ritmo do baixo. “Testa de Ferro”, que mereceu mais um instrumento estranho no colo de Carlos Guerreiro e o dedilhar da guitarra de Nuno Prata. As “Varejeiras”, responsáveis por um dos momentos mais marcantes da noite, com um holofote de luz direcionado para o rosto de Mitó que cantou com uma incrível seriedade de alma. E na repetição do refrão, “A varejeira é ligeira a voar, em qual de vós é que ela vai pousar?”, todos os músicos a acompanharam aproximando-se devagar na frente de palco, posicionando-se numa moldura negra perfeita. Saíram do palco acompanhados com as palmas efusivas do público, que se levantou em bloco a agradecer esse momento.
Um encore com “Tratado de paz”, numa projeção de sombras e silhuetas dos músicos. Quase a terminar, mais uma novidade, “Aldeia fantasma” onde o bombo acompanhou o refrão com uma certa mágoa, “Vai andor, vai andor”. Tema muito crítico quanto à desertificação do interior do país e à venda desenfreada das terras “(…) Venda sem saneamento (…) vai o rio esgoto abaixo.” Repetição da orelhuda canção “Corridinho português”, que nos fez levantar da cadeira e dançar, o “opá” que sobra muito pouco (do) português!
Música popular portuguesa, com alguns apontamentos subtilmente mais quentes e com acordes da(s) guitarra(s) alinhados com o rock. Os Cara de Espelho são uma espécie de ‘salvação’ da música de intervenção contemporânea, que assenta numa poesia orgânica e assertiva. Em vésperas de eleições, todas estas músicas são notas artísticas que fazem despertar a nossa consciência social coletiva. Obrigada Serginho!
Alinhamento
- Morte do Artista
- Cara Que É Tua
- Corridinho Português
- Paraíso Fiscal
- Fadistão
- Genuinamente
- D de Denúncia
- Roda Credito
- Dr. Coisinho
- Já Vou
- Politico Antropófago
- O Que Esta Gente Quer?
- Livres criaturas
- Testa de Ferro
- Varejeiras
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16. Tratado de Paz
17. Aldeia Fantasma
18. Corridinho Português