Há longos anos que na Índia se encantam serpentes com um instrumento de sopro que é, quase sempre uma flauta, não pelo som, mas pelo instrumento em si e a sua vibração. Ian Anderson, usa desde cedo os seus dotes na flauta para abrilhantar a sonoridade de uma banda que, para além de ter passado por de vários estilos musicais tem, na sua base, o rock progressivo.
Estes dotes de encantamento notam-se pela sua extensa carreira e, acima de tudo, por, após dois anos da sua visita a Portugal, terem enchido o Coliseu dos Recreios. Um Coliseu que esperava sedento pela viagem quase bucólica por diversas paisagens e travessias.
Ian não tem a banda originária a acompanhá-lo, mas tem elementos de exímia maestria que nos proporcionaram composições e orquestrações dignas de louvor.
Foi com aquele que é o álbum mais aclamado da sua carreira que deram início ao desfilar de intensidade que se seguiu por cerca de 1h e 45 minutos. Falo de Aqualung, claro, e da música “Cross Eyed Mary” que abriu a noite. Sentados confortavelmente deixamo-nos rapidamente ir no embalo da flauta e do rendilhado de cordas.
Ian é um excelente frontman, apesar de já não contar com a sua voz na plenitude, declama com emoção as suas letras, tem uns pulmões e lábios resistentes o suficiente para brincar e brilhar na flauta transversal e, ainda, nos entretém com o seu humor negro e algumas histórias que vai contando entre as músicas. Com quase 60 anos de carreira, permanece humilde naquilo que é e naquilo que faz e isso, para além de se sentir, faz com que uma noite destas se torne um verdadeiro e genuíno deleite do qual pudemos fazer parte. Não faltou a história dos Eagles nem a do senhor que pilotou o Enola Gay, sempre acompanhadas das respectivas músicas.
Apesar de terem lançado um disco no ano passado, de RökFlöte, só foram tocados dois temas, tal como de The Zealot Gene, de 2022. Foi com uma das músicas do mais recente disco, a “Wolf Unchained” que sentimos uma faceta mais metal da banda, com riffs corpulentos e de construção metaleira que se seguiram no alinhamento. A primeira parte terminava com uma versão de Johann Sebastian Bach da música “Bouree in E Minor” que teve no seu final um belíssimo solo de baixo ao qual se juntou a flauta depois, para uma dança a dois e, mais tarde, os restantes elementos.
É verdade que David Goodier, John O’Hara, Scott Hammond e Joe Parrish são todos maravilhosos e não há nenhum destes músicos que se possa enaltecer mais que os outros, pois são todos brilhantes entre si.
Depois de um breve intervalo para recuperar o pulmão, regressamos para a segunda parte do concerto, um pouco mais curta e mais triste, com faixas mais melancólicas mas dotadas de uma intensidade ainda maior, tal como o seu tamanho, tendo terminado com a belissíma “Aqualung”.
O encore foi feito com a “Locomotive Breath” que mereceu um solo de piano para deleite de muitos (meu principalmente) e ao som de “Cheerio” a banda e equipa foram apresentadas e vieram agradecer às pessoas.
Foi uma longa e densa viagem por paisagens com encruzilhadas, bosques, castelos, labirintos, montanhas, ondas do mar e, ainda, galos, lobos e cavalos. Todas elas cobertas de um enorme simbolismo e envoltas num manto sonoro que, seguramente, pelas características e brilhantismo, lhes mantém a longevidade até hoje.
Termino com uma vénia e um agradecimento pela viagem que fizemos juntos naquela quarta-feira, dia 6 de Março.