Concertos Reportagens

Carcass/Brujeria/Rotten Sound, Não é medo – é tumor

(*) Com a última data cumprida a 3 de Fevereiro de 2025, em França, a digressão Europa Rigor Mortis Part I passou por Lisboa e pelo Porto e confirmou as nossas suspeitas – numa época em que cada vez mais é necessário realizar uma triagem séria dos eventos a que devemos assistir, um concerto com 3 bandas clássicas é sinónimo de prioridade.

A Sonic Slam (com o apoio da Larvae Records, mais a norte) teve a dura tarefa de apresentar, a uma segunda e a uma terça-feira, em Lisboa e Porto, respectivamente, um evento que reuniu três dos colectivos mais intensos da história passada e presente do metal extremo. E, embora a capital tenha o dobro dos residentes da cidade do Porto, o que é certo é que, mais acima, a sala 2 do Hard Club esteve a poucos bilhetes de esgotar, com mais de 710 entradas contabilizadas.

Geralmente, é um número bastante invulgar no início de uma semana de trabalho, mas, quando verificamos as bandas envolvidas, o invulgar dá lugar à normalidade. Os finlandeses Rotten Sound iniciaram o retalho auricular do público às 20 horas em ponto com “Self”, denotando um som bastante grave, o que é algo natural, mas também meio embrulhado em si próprio. A meio da actuação, a sonoridade na sala melhorou, como pudemos aferir em músicas como “Targets”.

  • 20250128 - Rotten Sound @ Bourbon Room
  • 20250128 - Rotten Sound @ Bourbon Room

Os finlandeses nunca deixaram de ser fiéis ao som que praticam, um grindcore politizado e socialmente consciente onde o ser vale mais do que o parecer. Ao fim de mais de 30 anos e 8 longas-durações, a banda de Keijo Niinimaa (voz) e Mika Aalto (guitarra) aperfeiçoou uma assinatura dentro de um nicho muito específico. Tiveram o pior som da noite, mas não o suficiente para arruinar uma prestação muitíssimo forte. Os Rotten Sound são sempre uma excelente escolha inicial.

Em seguida, e mesmo não sendo os cabeças de cartaz, os norte-americanos Brujeria foram o nome que mais passeou de boca em boca no recinto pela curiosidade mórbida associada ao falecimento dos dois principais integrantes do grupo (Juan Brujo e Peach Pinche). Entre muitas das lamúrias que ouvimos, a que mais impacto negativo teve em nós foi «a banda de covers dos Brujeria», como se se tratasse de um gimmick para ganhar dinheiro rapidamente.

  • 20250128 - Brujeria @ Bourbon Room
  • 20250128 - Brujeria @ Bourbon Room

Puro engano. Os Brujeria tiveram o melhor som da noite, talvez por ter sido a banda a realizar o seu linecheck. Os barões do narcotráfico iniciaram a cerimónia com “Brujerizmo”, tema inicial do seu álbum homónimo de maior sucesso. O ritual de santería continuou com momentos clássicos como “La Migra”, “Colas de Rata”, “Consejos Narcos”, “Raza Odiada (Pito Wilson)” e a seminal “Matando Güeros”. No final, ficámos rendidos com uma exibição plena de profissionalismo e catchiness. Vayan sin miedo!

As ausências de Juan e Pinche são notórias, sim. Ainda que o colectivo de megaestrelas do metal extremo seja uma máquina de guerra em cima do palco, as diferenças entre um concerto dos Brujeria actuais e dos de antigamente têm que se lhes diga. Daí a dizer que o actual conjunto é uma banda de covers é infundado e desrespeitoso. A entoação de cada um dos temas clássicos da banda pelo público não deixou margem para dúvidas de que os Brujeria estão vivos e de saúde.

No entanto, chega a ser inglório abrir para os ingleses Carcass, uma banda há muito venerada pelos fãs de metal mais extremo. Para quem não a conhece, é oriunda da cidade de um outro quarteto musical um tudo-nada conhecido e o seu trabalho pode resumir-se a 5 discos que, um por um, mudaram o curso da história do metal, criando ou impulsionando 5 novos subgéneros. Em perspectiva, os Metallica nem 1 novo género criaram ou impulsionaram.

  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room
  • 20250128 - Carcass @ Bourbon Room

O primeiro sintoma adverso da noite foi “Buried Dreams”, tema inaugural da aula de anatomia que é “Heartwork”. Bastou esse primeiro instante para a sala perceber que estava perante um agente patogénico superior. O som, num estádio abaixo do dos Brujeria, não prejudicou por um momento que fosse a prestação dos fab four de Liverpool. As complicações começaram com “Incarnated Solvent Abuse”, mas a febre baixou com “No Love Lost”. Contudo, o pior estava para vir.

De rajada, “Genital Grinder”, “Pyosisified (Rotten to the Gore)” e “Exhume to Consume” inocularam um organismo já debilitado e mergulharam-no em convulsões severas. A equipa médica ainda tentou a reanimação com recurso a “This Mortal Coil”, mas em vão. A hora do óbito foi declarada cerca das 23:10 com “Corporeal Jigsore Quandary” em fundo e, 10 minutos passados, o patologista deu início ao seu trabalho com o medley “Ruptured in Purulence/Heartwork”.

O relatório da autópsia médico-legal não deixou margem para dúvidas: os exames externo e interno do Hard Club indicaram que os Carcass andam aí para durar muitos e bons anos. O nível de maturidade e à-vontade da banda são assinaláveis, com uma dedicação ao público que cria uma simbiose duplamente proveitosa – um organismo beneficia outro para seu próprio benefício. A interacção com o público, aliás, é sinal dessa associação benéfica entre os dois organismos.

No final, nos bastidores, passámos e fomos cumprimentados por Jeff Walker, de chinelos e calção, com banho tomado – foi apenas mais um dia de trabalho no escritório. A 1 ano de comemorarem 4 décadas na estrada, o dueto dinâmico Walker/Steer não pára de dar cartas, consciente da sua importância no vasto panorama do metal extremo. No dia seguinte, seria a vez de Madrid ser submetida à mesma rigidez cadavérica, para felicidade dos defuntos. Venha de lá mais um disco! Ave Carcass, morituri te salutant.

*o autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico